Livro Vs. Filme: 'O Nevoeiro'
Por VinÃcius Martins @cinemarcante
Hoje, em uma edição especial da coluna, estaremos comentando os principais elementos que diferenciam o conto brilhante de Stephen King de suas respectivas adaptações para o cinema e para a TV.
Livro: Tripulação de Esqueletos, escrito por Stephen King
Filme: O Nevoeiro, dirigido por Frank Darabont
Série: O Nevoeiro, criada por Christian Torpe
Todos conhecem o nome de Stephen King como um Ãcone atrelado ao mistério e ao horror. No entanto, muitos ainda não sabem que ele é também o dono do imaginário inventivo por trás de grandes dramas como ‘À Espera de um Milagre’ e ‘Um Sonho de Liberdade’, que tiveram suas adaptações para o cinema comandadas por ninguém menos que Frank Darabont. A veia de King para os dramas humanos é o que há de melhor em seus trabalhos, em especial quando esse viés se mescla com o mistério sobrenatural e a contemplação do horror, exatamente como o que ele fez em ‘O Nevoeiro’ - conto que é, para mim, o seu trabalho mais rico em simbologia.
Todos conhecem o nome de Stephen King como um Ãcone atrelado ao mistério e ao horror. No entanto, muitos ainda não sabem que ele é também o dono do imaginário inventivo por trás de grandes dramas como ‘À Espera de um Milagre’ e ‘Um Sonho de Liberdade’, que tiveram suas adaptações para o cinema comandadas por ninguém menos que Frank Darabont. A veia de King para os dramas humanos é o que há de melhor em seus trabalhos, em especial quando esse viés se mescla com o mistério sobrenatural e a contemplação do horror, exatamente como o que ele fez em ‘O Nevoeiro’ - conto que é, para mim, o seu trabalho mais rico em simbologia.
O CONTO
A história apresenta um grupo de pessoas, entre conhecidos e desconhecidos da pequena cidade de Bridgton, no estado do Maine, que se vêem presos em um supermercado após um nevoeiro sinistro tomar conta de toda a região. O conto começa narrando a vida caseira de David Drayton, pai de famÃlia (que delÃcia, cara) dedicado que é pego de surpresa por uma tempestade no meio da noite. Após ter sua casa parcialmente destruÃda devido a queda de uma árvore do vizinho, ele e o filho seguem até o mercado para comprar mantimentos e materiais para o reparo. O vizinho dono da árvore que causou o estrago, Brent Norton, vai com eles enquanto a esposa de David fica em casa, que tem uma vista belÃssima para o lago. Antes de sair, David e os outros reparam no nevoeiro anormal que vem das montanhas ao longe em direção à margem, seguindo contra o vento em sua lentidão densa. Após chegar ao mercado, o nevoeiro os alcança e todos percebem que há algo estranho nele. Gritos e vultos imensos são vistos em meio ao nevoeiro, e quem ousa sair do supermercado é violentamente morto.
A escolha de King em tornar um supermercado o principal cenário de sua história é certeira para estabelecer o conflito. Um local com um imenso estoque de mantimentos tira a busca por esses itens essenciais do foco clichê de enredos assim, e passa a destacar os conflitos dos relacionamentos humanos diante do caos instalado onde só havia a vida pacata de uma cidade pequena. Aos poucos, as diferenças entre os novos residentes do supermercado começam a se aflorar e grupos se formam, dentre os quais destacam-se os fanáticos religiosos, os céticos e os adeptos à razão. Há também os valentões, os militares, os neutros e os dispensáveis que estão ali só para fazer número e morrerem na primeira oportunidade.
A escolha de King em tornar um supermercado o principal cenário de sua história é certeira para estabelecer o conflito. Um local com um imenso estoque de mantimentos tira a busca por esses itens essenciais do foco clichê de enredos assim, e passa a destacar os conflitos dos relacionamentos humanos diante do caos instalado onde só havia a vida pacata de uma cidade pequena. Aos poucos, as diferenças entre os novos residentes do supermercado começam a se aflorar e grupos se formam, dentre os quais destacam-se os fanáticos religiosos, os céticos e os adeptos à razão. Há também os valentões, os militares, os neutros e os dispensáveis que estão ali só para fazer número e morrerem na primeira oportunidade.
Lidando com os dilemas morais dos envolvidos presos no supermercado, com a ameaça lá fora, com a incerteza quanto ao futuro e com um caso de infidelidade por parte do protagonista, o conto se mescla entre o terror e a fantasia, mostrando ao leitor que os verdadeiros monstros talvez sejam aqueles que julgamos como iguais.
O FILME
Lançado no Brasil em agosto de 2008, quase um ano após seu lançamento nos EUA, ‘O Nevoeiro’ chegou aos cinemas sem fazer muito barulho. DistribuÃdo pela Paris Filmes, o filme não fez um mar de dinheiro mas agradou boa parte dos crÃticos por aqui.
Seguindo de maneira quase que inteiramente fiel à narrativa do livro, a produção comandada por Frank Darabont mudou apenas pontos sem importância fundamental para a trama, de modo a trazer mais riqueza e qualidade a história notável de King. Um exemplo disso é a mudança da etnia de Norton, que não muda em nada o cerne do personagem, e que é irritavelmente interpretado por Andre Braugher. Vale destacar também a atuação de Marcia Gay Harden como a senhora Carmody, que rouba a cena com uma atuação avassaladora - mas falaremos sobre ela daqui a pouco.
Seguindo de maneira quase que inteiramente fiel à narrativa do livro, a produção comandada por Frank Darabont mudou apenas pontos sem importância fundamental para a trama, de modo a trazer mais riqueza e qualidade a história notável de King. Um exemplo disso é a mudança da etnia de Norton, que não muda em nada o cerne do personagem, e que é irritavelmente interpretado por Andre Braugher. Vale destacar também a atuação de Marcia Gay Harden como a senhora Carmody, que rouba a cena com uma atuação avassaladora - mas falaremos sobre ela daqui a pouco.
A criação visual dos monstros, assim como a escalação do elenco (que grande parte Darabont levou consigo posteriormente para a série de TV ‘The Walking Dead’), é adequada e transpõe para a tela a mesma atmosfera complexa e instável que ronda as páginas do imenso conto do livro ‘Tripulação de Esqueletos’. Particularmente, tenho ‘O Nevoeiro’ como um dos melhores filmes de 2008, mesmo que hoje os efeitos pareçam obsoletos.
A SÉRIE DE TV
A proposta da série de TV criada por Christian Thorpe é bastante diferente da ideia original. O conceito básico, entretanto, é o mesmo: uma cidadezinha que fica refém de um nevoeiro anormal que chega do nada e se mostra hostil. O vies é que muda completamente. Ao contrário do conto e do filme, que limitam o conhecimento do leitor/espectador ao que é sabido dentro do mercado acerca da ameaça que os circula, a série divide as tramas e coloca diversos grupos pela cidade. Tem o núcleo do shopping, da igreja, do hospital, da delegacia, e tem também os personagens que ficam pulando de núcleo em núcleo de modo a conectar as tramas entre si.
Os personagens originais não existem aqui, e os dilemas do conto são postos de lado para tornar as histórias mais complexas e encher ainda mais de mistério o que já era interessante. O resultado, infelizmente, é uma confusão narrativa que deixa o enredo como um refém de si mesmo. Aqui são debatidas questões como virgindade, estupro, relações incestuosas, passados promÃscuos, segredos de famÃlia e organizações criminosas. Fanatismo religioso e militarismo também são abordados aqui, estabelecendo uma espécie de relação com o que é abordado no conto.
Os personagens originais não existem aqui, e os dilemas do conto são postos de lado para tornar as histórias mais complexas e encher ainda mais de mistério o que já era interessante. O resultado, infelizmente, é uma confusão narrativa que deixa o enredo como um refém de si mesmo. Aqui são debatidas questões como virgindade, estupro, relações incestuosas, passados promÃscuos, segredos de famÃlia e organizações criminosas. Fanatismo religioso e militarismo também são abordados aqui, estabelecendo uma espécie de relação com o que é abordado no conto.
Nem o nevoeiro é o mesmo. Se no conto e no filme o nevoeiro trás feras bestiais e leviatãs, na série de TV ele reproduz os medos Ãntimos de cada pessoa que entra nele, personificando-os e tornando-os visÃveis também aos demais que estão a volta. O que saiu dessa ideia rendeu um nó difÃcil de desembaraçar, e a série, que visivelmente já começava a encher linguiça, foi cancelada após a sua primeira temporada.
A PROFECIA E A MUDANÇA DO FINAL
A série de TV obviamente não teve um desfecho conclusivo, deixando um gancho enorme para a segunda temporada que, conforme agora sabemos, não será produzida. Já o filme, por outro lado, é um cÃrculo fechado com inÃcio, meio e fim, coisa que nem o conto tem de forma exata. Contudo, antes de comentar o final impactante do filme, precisamos chamar a atenção para um detalhe curioso. A partir daqui haverá spoilers, fica o aviso.
Personagem interpretada pela Marcia Gay Harden, a senhora Carmody começa aos poucos a aliciar pessoas no mercado para um espécie de seita criada por ela, cuja finalidade é alertar aos presentes quanto ao dia da expiação, o juÃzo final, onde a mão divina cairá sobre os impuros, esmagando-os como insetos. Criando doutrinas em cima de versÃculos bÃblicos isolados e fora de contexto, ela consegue comover mais pessoas após cada ataque, e até alguns dos machões mais céticos passam para o lado dela. A insanidade se propaga com rapidez e se torna questão de tempo até que a maioria passe a cultuar a senhora Carmody como se fosse uma enviada do próprio Messias. E todo o caos que se instala atinge seu ápice quando ela afirma, com toda a propriedade que lhe é incumbida, que soube através de revelação divina que o nevoeiro só terá seu fim quando ocorrer um sacrifÃcio humano. E pior: ela aponta quem deverá ser sacrificado. O escolhido é Billy, filho de David Drayton, o protagonista.
David (Thomas Jane), que já estava reunindo algumas das poucas pessoas lúcidas que ainda restavam a fim de sair de lá, teve que antecipar seus planos de partida para salvar a vida do filho e, na fuga, teve que se envolver em um combate com os fanáticos religiosos - inclusive a senhora Carmody, que acabou sendo morta com um tiro de pistola na barriga pelas mãos de Ollie Weeks, que no filme é vivido por Toby Jones. Após saÃrem do supermercado, Ollie é atacado e morto por uma das criaturas do nevoeiro.
David (Thomas Jane), que já estava reunindo algumas das poucas pessoas lúcidas que ainda restavam a fim de sair de lá, teve que antecipar seus planos de partida para salvar a vida do filho e, na fuga, teve que se envolver em um combate com os fanáticos religiosos - inclusive a senhora Carmody, que acabou sendo morta com um tiro de pistola na barriga pelas mãos de Ollie Weeks, que no filme é vivido por Toby Jones. Após saÃrem do supermercado, Ollie é atacado e morto por uma das criaturas do nevoeiro.
É nesse momento que a mudança entre conto e filme começa a acontecer. No filme, o grupo composto por David, o filho Billy e mais três pessoas (Dan Miller, Irene Reppler e Amanda Dumfries) sai pela estrada rumo à casa de David, onde confirmam a morte de sua esposa e seguem viagem. No livro, Dan Miller morreu na expedição à farmácia e, portanto, não está nessa cena.
O conto se encerra com David (que é quem narra todo o conto em primeira pessoa) explicando que todo o material escrito é um registro que ele está deixando em uma parada na beira da estrada, na noite do dia vinte e dois de julho, antes de os quatro continuarem seguindo viagem na esperança de encontrar o fim do nevoeiro. Um final aberto, bem verdade, mas ainda assim satisfatório. Bem, pelo menos não é tão desolador quanto o final que Darabont escolheu dar para ao filme.
No filme, o grupo de cinco sobreviventes (Dan Miller, interpretado por Jeffrey DeMunn, ainda está vivo) segue indo no carro até que o combustÃvel se acabe. Quando isso acontece, David tem uma escolha difÃcil: usar a arma de Amanda, que foi usada por Ollie para matar a senhora Cassidy, para dar uma morte rápida e indolor para o pequeno grupo dentro do carro. O único porém é que eles são cinco, e só restaram quatro balas. Àquela altura, uma morte assim seria um presente, muito melhor do que ser estripado ou devorado por um dos monstros lá fora. Restou a David essa última opção. Rapidamente, ele aproveita o sono dos passageiros e os elimina efetuando quatro disparos seguidos, rápidos. Entre os quatro, seu filho Billy também foi sacrificado. Após o feito, com lágrima de dor e ódio, David sai do carro estacionado ao acostamento a fim de enfrentar as bestas que se ocultam no breu. Ele grita, pragueja e desafia as feras, e aguarda a morte vir até ele. Um barulho alto começa a se aproximar e, para a surpresa de David, um tanque de guerra brota no nevoeiro e passa ao seu lado, seguido por uma carreata de veÃculos militares carregando sobreviventes e soldados armados com lança-chamas, disparando contra o nevoeiro e dissipando-o. Dois minutos e os homicÃdios misericordiosos não teriam ocorrido.
O lamento de David em sua desgraça é aterrador, e a surpresa do público gera reações diversas. Tem gente que detesta esse final até hoje, mas particularmente acho ele incrÃvel. O que a maioria não percebe ele é exatamente a consumação da profecia da senhora Carmody, que disse que só se livrariam do nevoeiro maldito após o sacrifÃcio de sangue de Billy Drayton. A série tenta emular o feito projetando algo parecido, mas trata o fator profético de forma mais explÃcita. O problema ali é que encerram o mistério já na primeira temporada, matando a senhora Carmody da série (chamada Nathalie Raven, interpretada por Frances Conroy) no último capÃtulo, mantendo a trama longe da descoberta do verdadeiro indivÃduo a ser sacrificado. Talvez a “encheção de linguiça” tenha sido a maior razão do cancelamento da série de 2017.
DOS TRÊS, QUAL É O MELHOR?
Pergunta difÃcil essa. A escrita de King é magnÃfica, isso é inegável; a série de TV se perde em sua proposta, mas tem suas qualidades; e o filme consegue transformar as palavras de King em imagens, apesar de hoje em dia alguns efeitos parecerem toscos por serem visivelmente ultrapassados. Pelo acréscimo à história e por explorar a outro caminho para entregar um final contemplativo sobre a desolação, fico com o filme.
E você? Já viu ou leu algo sobre ‘O Nevoeiro’? Comente o que achou sobre as suas diferentes mÃdias! Sua opinião é sempre bem-vinda!
'Papo de Cinemateca - Muito Cinema pra Todo Mundo'
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