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Livro que deveria virar filme - Meus Lugares Escuros | #2

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


O conteúdo do livro comentado hoje não é recomendado para menores de 18 anos.

Você talvez já tenha visto o nome de James Ellroy na sessão de romances policiais de alguma livraria, ou quem sabe nos créditos de algum filme do mesmo gênero, como roteirista ou autor de alguma obra em que o filme se baseia. Talvez se lembre do nome dele sendo citado em ‘O Cheiro do Ralo’, filme brasileiro de 2007, quando o protagonista vivido por Selton Mello comenta estar lendo um livro do autor. E por final, o que talvez seja o mais provável, você nunca tenha nem sequer ouvido falar de Ellroy. Contudo, mesmo se for esse o caso, tenho quase certeza de que já ouviu falar de algum dos seus livros - ou dos filmes baseados neles.


Ellroy escreveu os romances que deram origem aos filmes ‘Cop: Um Policial Acima da Lei’, ‘Los Angeles: Cidade Proibida’ e ‘Dália Negra’, que são, respectivamente, de 1988, 1997 e 2006. Ele foi também co-roteirista de ‘Os Reis da Rua’, filme dirigido por David Ayer e estrelado por Keanu Reeves em 2007. Consagrou-se como o autor da icônica trilogia Lloyd Hopkins e é um dos maiores nomes do pós-modernismo literário estadunidense, merecendo com justiça ao título que lhe foi dado. Ele escreveu, entre 1995 e 2009, a polêmica (e excelente) trilogia ‘Underworld USA’ (que li apenas fragmentos e pretendo conhecer melhor algum dia), onde ele constrói com maestria uma cadeia de suspenses criminosos, fazendo uma releitura ficcional da história americana moderna, sempre com seu estilo noir. Mas o livro que trataremos hoje não é uma história criada em seu imaginário inventivo, não; trata-se de uma autobiografia, polêmica, honesta, e extremamente suja. E vamos apresentar razões que fazem essa obra tão intensa merecer se tornar um filme.

O CASO DE GENEVA ELLROY

A tragédia da vida de James se dá a partir do evento da morte de sua mãe, que aconteceu quando ele tinha apenas dez anos, em 22 de Junho de 1958. O pouco que se sabe sobre o crime que tirou a vida de Geneva Odelia Hilliker Ellroy (ou apenas Jean, como era conhecida entre os amigos) é que ela esteve em um drive-in com um homem desconhecido algumas horas antes de seu corpo ser encontrado, e depois foi vista em um bar com esse mesmo desconhecido e com uma loira, cuja identidade não foi descoberta até hoje. A tal mulher aparentemente sabia quem era o homem misterioso, o que torna ela uma peça central na resolução do atentado contra a vida de Jean. No entanto, a loira os deixou. Jean e o homem desconhecido foram vistos juntos pela última vez por volta das 03h00, horário que em pouco antecede o momento em que seu corpo foi encontrado por alguns jovens atletas da liga mirim de beisebol e seus treinadores. Ninguém na fábrica onde Jean trabalhava como enfermeira soube identificar os suspeitos descritos pelas testemunhas daquela noite, e só o que restou ao pequeno James, no final de sua infância, foi a recordação de voltar para casa após passar o final de semana com o pai (Jean e Armand, o pai de James, eram divorciados) e encontrar a polícia em seu quintal. O caso de Jean Ellroy continua sem solução até os dias de hoje, já que nenhum dos indivíduos desconhecidos que estiveram com Jean naquela noite foram identificados. 

A ASCENSÃO DE UM ARTISTA

A controvérsia que permeia Meus Lugares Escuros está nas revelações sobre a adolescência de seu autor. Ellroy confessa aqui seus crimes e pecados mais íntimos, relatando que já foi preso, viveu nas ruas (alguns anos após a morte de Jean) e foi mendigo, se viciou em drogas, virou alcoólatra, roubou carros, e invadiu casas para furtar calcinhas alheias (e cheirá-las também), além de bater punhetas mútuas com um amigo e se viciar em pornografia. Usou diversas modalidades de entorpecentes e se tornou alcoólatra ainda na adolescência.

Embora o miolo do livro consista no ato de revisitar o passado para virá-lo e revirá-lo em busca de respostas para o caso da morte de sua mãe, vemos aqui um nível de maturidade altíssimo da parte de Ellroy ao lidar com sua própria história, encarando antigos demônios para poder, enfim, ter a chance de exorcizá-los. O livro é dividido em quatro atos (A Ruiva, O Garoto da Foto, Stoner, e Geneva Hilliker), e apresenta fases diferentes da vida do autor e desbrava as faces ocultas de sua mãe. Ambientado em uma Los Angeles corrupta, onde as drogas, a violência e o crime são parte da paisagem, a narrativa de Ellroy reconstrói, detalhadamente, todos os ângulos do caso de Jean e tenta encontrar algum sentido que o ajude a entender como se deu sua morte. Jean, segundo as memórias de Ellroy sobre as conversas que teve com o pai à época do crime, era uma alcoólatra. Não existe consenso se houve estupro ou consentimento na relação sexual que antecedeu o seu óbito. Sabe-se que ela transou antes de morrer, que ela foi estrangulada com uma de suas próprias meias, e a maneira como seu corpo foi encontrado - com uma descrição verossímil de Ellroy, citando até mesmo a hera próxima ao meio-fio e as pérolas de Jean espalhadas pela calçada - indicava que poderia ter havido luta corporal, mas não se sabia ao certo onde o homicídio teria acontecido, já que poderia tanto ter sido ali como também o corpo dela poderia ter sido "meticulosamente posicionado", nas palavras do próprio autor.

Essa tragédia deixou um grande trauma na vida de James Ellroy, e os rumos que sua vida tomou depois daquela ocasião foram no mínimo questionáveis - mas também o levaram à literatura, ao estrelato e ao gênero do suspense policial. A grande questão, levantada pelo próprio Ellroy em ‘Meus Lugares Escuros” Ã© se ele teria obtido tamanho prestígio e alcançado seu imenso renome no mundo literário (ou ainda se ele teria sequer se tornado um escritor) se sua mãe não tivesse sido brutalmente assassinada e se o caso dela permanece um mistério. “Sua morte define minha vida” - diz Ellroy no livro. Foi a ausência de um desfecho para aquele caso que o levou a pesquisar sobre o crime de Elizabeth Short, o que rendeu o romance Dália Negra; e assim por diante, sempre com algum mistério a ser solucionado e alguma questão pendente do passado a ser resolvida. Em outro trecho, ele se declara para a mãe dizendo: “Reescreverei sua história e revisarei meu julgamento, à medida que seus antigos segredos forem explodindo. Justificarei tudo isto em nome da vida obsessiva que você me legou. Será a tragédia a fonte do seu talento? Viria daí o estilo pessimista recheado de moralismos que Ellroy adquiriu em sua escrita?

POR QUE MERECE VIRAR FILME?

Seguindo essa linha, a jornada turbulenta e agressiva (e por vezes melancólica) da vida de James Ellroy renderia uma excelente cinebiografia, do jeito que Hollywood gosta de fazer. Sua caminhada de superação é notável, assim como o seu sofrimento pelas marcas impostas a ele tantas décadas atrás, deixadas cobertas por interrogações que parecem nunca se dissipar.


Sendo construído como um suspense minuciosamente elaborado, Meus Lugares Escuros assume para si um caráter romantizado e fluido, indo além de um mero registro documental desses que vemos repetidamente e parecem seguir uma cartilha padrão. Enquanto os tantos outros livros do tipo apelam constantemente ao emocional para conquistar seu público, Ellroy segue no sentido contrário e é, por várias vezes, extremamente frio e impessoal ao tratar o caso de sua própria vida. Além disso, um filme sobre a vida do autor e roteirista seria também uma carícia na própria indústria. Hollywood adora acenar para si mesma, e que outro jeito melhor de fazer isso se não com um relato real, cru e desprovido de beatices?

Devo assumir que achei o livro um tanto quanto difícil de ler (“chato” é a palavra), mas acredito que isso se dê à época que o li - quase dez anos atrás. Porém, por incrível que pareça, a história incompleta sobre o assassinato de uma mãe contada sob o relato do próprio filho continua na minha mente até hoje. Um filme que me lembra bastante Meus Lugares Escuros (tanto em temática e gênero quanto em estilo e desfecho) é ‘Zodíaco’, dirigido em 2007 pelo brilhante diretor David Fincher. A construção do suspense nos dois, assim como o ritmo e a distribuição de informações aparentemente irrelevantes (mas que moldam a composição dos indivíduos em cena), é bem parecida. Quem gostou do filme de Fincher provavelmente irá gostar do livro autobiográfico de Ellroy.

MINHA EXPERIÊNCIA COM O LIVRO

Me lembro de ter sentido um turbilhão de sensações conflitantes, indo do mais puro estarrecimento até a sensibilidade da compaixão, oscilando entre o total desprezo e a crescente curiosidade de como ele teve coragem de fazer aquilo tudo e, ainda mais, de falar abertamente sobre seus feitos. Há traços fetichistas intensos nos relatos de Ellroy, principalmente no que diz respeito ao seu relacionamento complicado com a mãe quando ela ainda estava em vida - e também com o período de dúvidas que ela deixou após a morte. Ellroy reconhece que tinha fortes desejos sexuais pela mãe. Ele se masturbava com uma frequência altíssima e inclusive, certa vez, se viu pensando em Jean.

Ellroy e sua mãe, Jean Hilliker
“Eu estava na banheira. Batia punheta enquanto pensava num cortejo de rostos de mulheres mais velhas. Vi minha mãe nua, lutei contra a imagem e perdi. Bolei uma história bastante precária no mesmo instante. Era 1958. Minha mãe não tinha morrido em El Monte. Ela não era bêbada. Ela me amava como homem. Fizemos amor. Senti o cheiro de seu perfume e de cigarro em seu hálito. O mamilo amputado me encheu de tesão. Afastei os cabelos dela dos olhos e disse que a amava. Minha ternura a fez chorar. Foi a história mais apaixonada e carinhosa que eu tinha inventado. Isso me deixou envergonhado e horrorizado com o que eu tinha dentro de mim.”

A cena descrita acima pode escandalizar algumas pessoas, mas há de se convir: a escrita de Ellroy não é hipócrita. Foi o trecho que encontrei, folheando o livro novamente, que melhor expressa o quão horrorizado eu fiquei com o tamanho do impacto das confissões escritas nele. Claro, transpor isso às telas não é necessário - uma menção verbalizada já vale para o registro (não só dessa ocasião como também de diversos outros momentos questionáveis relatados em seu livro). No entanto, em outros trechos, via-se simultaneamente o tom do autor se alterar ao nutrir de um ódio avassalador pela figura da própria mãe. Ellroy confessa ter desejado a morte dela, mesmo antes de ela morrer.

Termino agora dizendo que este não é um livro para qualquer pessoa, e o público para um filme assim certamente seria bastante seleto. O conteúdo lido (e mostrado, caso algum dia alguém faça um filme) exige que a platéia se dispa de seus próprios preconceitos e insinceridade. Para contemplar uma obra como essa é necessário, antes de mais nada, se reconhecer como ser humano e entender que não tem como ser perfeito em um mundo tão corrompido; deve-se assumir as próprias imperfeições para aceitar as de Ellroy sem torná-lo o vilão do próprio livro e, por consequência, da própria vida. De qualquer maneira, não há demérito na obra que a desqualifique a ser adaptada aos cinemas - pelo contrário! ‘Meus Lugares Escuros’ merece (e muito!) ganhar uma versão filmada. Afinal de contas, superação é superação.


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