“Hamlet”: longa traça um paralelo político entre a tragédia shakespeariana e o Brasil em meio ao Golpe | 2023
NOTA 6.0
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
Poucas obras dentro do campo artístico são tão relidas ou mencionadas quanto “Hamlet”. A peça escrita por William Shakespeare vem, desde que foi finalizada em 1601, ganhando de tempos em tempos uma releitura que mostra o quão eternos são dilemas enfrentados pelo príncipe da Dinamarca no trilhar de sua trágica (e existencial) jornada de vingança. Trata-se, entre tantas outras possibilidades, de um embate ferrenho entre uma juventude, enfrentando inesperadamente os dilemas provocados por um chamado à ação, e um governo que chega ao poder por vias escusas, viés este do qual a nova versão cinematográfica realizada por Zeca Brito se aproveita bem.
Em meio ao caos político que o Brasil vivia (estranho usar o verbo no passado) em 2016, Hamlet (Frederico Restori) é um rapaz que participa ativamente dos movimentos estudantis que clamavam pelo fim das desigualdades e que apontavam o dedo para os conluios que culminaram no golpe que depôs a presidente Dilma Houssef. Membro de uma ocupação escolar, o jovem se vê diante dos percalços do amadurecimento num país que insiste em manter os privilégios de suas castas superiores, enquanto reflete sobre se tornar ou não o líder natural do grupo estudantil do qual faz parte. É interessante como Brito expõe a contradição de um protagonista (“aquele que age” desde a gênese grega do teatro) que rejeita não só o rótulo de “alienada” que a sociedade impõe à população de sua faixa etária como também uma estrutura hierarquizada (“Não há liderança!”, retruca sempre), mas que, aos poucos, vai se tornando o elemento central que representa os vários jovens reais com quem “contracena”.
Realizado num preto e branco que parece simbolizar o choque de pensamentos contrários, o longa possui momentos tensos, como a discussão entre a massa de estudantes e o secretário de educação – acompanhado, claro, de seu séquito de súditos -, no qual, inclusive, até o diretor de câmera em punho é questionado sobre uma suposta atitude inflamatória perante os secundaristas. Além disso, chama a atenção uma breve, porém marcante, participação do crítico e cineasta Jean-Claude Bernadet (que já havia atuado em outra versão para as telas da peça) na qual problematiza a noção cristalizada da educação como elemento transformador, já que ela, afinal, sempre foi gerida por um Estado predominantemente conservador.
Embora carregue consigo um estranho desencaixe temporal por não ter sido lançado no calor da convulsão sociopolítica, que agitava o Brasil na segunda metade da década passada e por tampouco possuir o distanciamento necessário para uma reinterpretação dos fatos, este híbrido de documentário e ficção ainda consegue extrair de seu material reflexões sobre um cenário tragicamente bem longe de qualquer ideal progressista. Ser ou não ser um país mais justo: eis a questão.
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