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Especial: Dissecando ‘Com amor, Van Gogh’

Um novo marco cinematográfico?


Por Vinícius Martins @cinemarcante


Antes de qualquer outra coisa, tenho que explicitar minha inconformidade com títulos que são traduzidos para o português visando em prioridade o fator comercial. O filme - vulgo obra de arte - 'Com Amor, Van Gogh’ é a mais nova vítima dessa artimanha do mercado, perdendo muito de sua identidade e até um pouco de seu charme nessa tradução apelativa. O título original, 'Loving, Vincent’, representa com muito mais fidelidade o aspecto pessoal que o filme apresenta, explorando os demônios da intimidade de um dos maiores gênios visuais do último século, dispondo-se a retratar a história não com o foco em sua vida, mas sim no mistério quanto a sua morte.




Partindo já do título, não há quem possa negar que 'Com Amor, Vincent' (sim, eu vou chamar o filme desse modo a partir de agora, como o bom pirracento que sou) já é uma obra-prima desde seu nome. O que debatemos aqui hoje é se há nele mérito para ser coroado com um Oscar ou, no mínimo, receber as honras e o reconhecimento de ser chamado de inovador.

Quando foi anunciado que 'Com Amor, Vincent' seria produzido da forma como seria, com milhares de telas pintadas a mão para contar sua história frame a frame, houve quem aplaudiu e houve quem duvidou. A ousadia da ideia, que fazia uso de um recurso antigo e deveras cansativo, gerou ansiedade entre quem chegou a ouvir falar da produção. Após muito tempo, meses e meses depois de seu anúncio, foi divulgado um trailer na internet que fez os céticos e críticos babarem com a sensibilidade presente na assinatura visível do finado artista. Só que, apesar de lindo, o filme ainda demoraria muito para chegar aos cinemas, já que o material do trailer era, até então, o único que eles tinham montado. A ansiedade, que já era grande, cresceu mais.




Entretanto, fazer um filme como esse não é nada simples. Para que você entenda o quão difícil é fazer um filme assim, vamos usar alguns números que são bons conhecidos de quem entende de cinema. A escala é simples: 24x1. Para cada um segundo de filme, a câmera registra vinte e quatro fotografias que, vistas de forma sequencial, geram a ilusão de movimento. Basicamente, o filme nada mais é do que um punhado colossal de fotos sobrepostas umas às outras em uma sequência enorme, sendo que cada uma dessas fotos que passam em uma fração de segundo é chamada de frame. São vinte e quatro frames por segundo a média normal de filmagem comercial. Peter Jackson foi além com sua trilogia 'O Hobbit' e dobrou a quantidade de frames, criando a tecnologia HFR (High Frame Rote), mas muita gente reclamou de desconforto assistindo aos filmes dessa forma. Particularmente, fiquei encantado ao ver 'A Desolação de Smaug' com uma riqueza bestial de detalhes e movimentos.


Então, já que precisa-se de vinte e quatro fotografias para fazer um segundo de filme, tente imaginar quantos quadros foram necessários ser pintados para ocupar o espaço de uma hora e meia. Sim, o cálculo cola com 129.600 quadros, fora as centenas de pinturas que foram descartadas da produção por terem algum mínimo errinho aqui ou ali que comprometeria o desenvolvimento visual de uma cena inteira. Entretanto, na verdade, foram usados bem menos quadros do que esses quase cento e trinta mil, sendo um montante de aproximadamente 65.000 telas. Essa “economia” em prol da praticidade se faz visível através de cenas de plano aberto, onde alguns detalhes são alterados para dar a devida sequência e continuidade da história. Nessas cenas em especial, tendo como exemplo uma de diálogo junto a um muro, vê-se o borrão das alterações na tinta a óleo em um ponto específico do frame, no contorno do personagem que se movimenta, enquanto a paisagem (no caso dessa cena de diálogo, o muro em segundo plano) permanece imóvel ao fundo.

Apesar de trabalhoso, esse método não é original. As animações clássicas da Disney, como ‘Branca de Neve e os Sete Anões’, eram todas feitas frame a frame, desenho após desenho, fazendo acontecer a magia do cinema muito antes de 2017. Apesar de não ser o precursor da maneira de fazer esse tipo de animação, 'Com Amor, Vincent' merece seu devido destaque por usar elementos de um artista específico para criar um estilo compatível, criando uma singularidade notável dentro da indústria.




Tenhamos como exemplo ‘Amadeus’, o belíssimo - e majestosamente genial - vencedor do Oscar de 1984, que usou as composições originais de Mozart para ter como base sua própria trilha sonora (além de mostrar também o processo de criação e as composições do protagonista, é claro) e conquistou o público por conseguir transpor a assinatura musical de Wolfgang Amadeus Mozart para o cinema. Nesse caso, já que a identidade do trabalho do referido progenitor da temática é expressa através de música, fica “fácil” (não é nada fácil, na verdade, e não estou desmerecendo esse clássico que amo; fácil aqui entra com caráter de comparação) expressar a alma do artista através de suas obras. Mas no caso de Vincent Van Gogh, que pintava quadros, a complexidade em querer usar sua fórmula para fazer um filme vai além do trabalho de uma pessoa só (um compositor competente, responsável por “pintar” as notas musicais sozinho e dar tudo mastigado para que outros músicos orquestrados só reproduzam sua escrita em um dia ou dois de gravação em um estúdio). Para ‘Com Amor, Vincent’, foram necessários mais de cem pares de mãos em um exaustivo trabalho de anos de dedicação - tudo por uma causa que busca, acima de tudo, o louvor a um mestre do expressionismo.

Não há como corrigir digitalmente (na verdade há sim, mas os produtores optaram por não fazer uso desse recurso) os “defeitos” nos quadros descartados, ao contrário do que é feito através de programas de computador com algum instrumento desafinado em uma orquestra. E lhes digo, meus amigos, que eu teria um enorme prazer em ter um quadro desses que foram “deixados ao vento” pendurado na parede da minha sala. Cada frame - cada pintura - é expressa de uma forma única e suave, mesmo nas cenas mais agressivas ou corridas. As múltiplas técnicas de pintura usadas - que não são somente as de Van Gogh - para situar o espectador no tempo da história que é contada (o roteiro é repleto de flashbacks e multi-ângulos sobre uma mesma cena na medida em que uma informação nova é acrescentada na trama) enriquece o que já é de valor imensurável, seja com suas nuances ao toque de uma mão na água que criando ondulações que deformam um reflexo até sua recomposição ou seja com o roteiro de qualidade incontestável, que busca uma resposta inconveniente para uma tragédia irreparável.




Quem gosta de ouvir trilhas sonoras também gostou do filme, ainda mais se reconheceu a forma como o Cello é usado com as demais cordas ao mesmo tempo em contraponto e em sincronia, seguindo paralelamente o desenvolvimento crescente da instrumentação; uma trilha, meus queridos, do grande Clint Mansell, que trabalhou com Darren Aronofsky em 'Fonte da Vida’ (um filme pouco conhecido e extremamente filosófico estrelado por Hugh Jackman e Rachel Weisz).

Com um elenco fabuloso (que gravou todas as cenas antes das pinturas como um “rascunho” para a arte) e um roteiro arrebatador, 'Com Amor, Vincent’ vai além de ser apenas uma excelente animação merecedora de Oscar. Ele é A animação do ano, com um a maiúsculo que, por maior que seja, nunca será capaz de representar a grandeza do feito que esse filme é. Resta-nos aplaudir, então, pois finalmente nos deparamos com uma legítima e intensa obra-prima do nosso tempo.




'Papo de Cinemateca - Muito Cinema pra Todo Mundo' 

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