PiTacO do PapO - 'A Forma da Água' | 2018
NOTA 9.8
Sobre ovos cozidos, Nintendo, masturbação e Carmen Miranda.
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Há uma cena, logo no começo de 'A Forma da Água', em que uma fábrica de chocolates pega fogo. O incêndio não é mostrado, apenas comentado, e as palavras do personagem de Richard Jenkins, ao sentir o cheiro de cacau torrado, são uma perfeita descrição aplicável também ao filme como um todo: “tragédia e deleite”, ele diz.
O novo filme de Guillermo Del Toro passa longe de ser somente uma apologia à bestialidade; ele é uma sinfonia do impossível, que se empenha em tornar louvável o absurdo presente no ato de se apaixonar, sem esquecer o que há de belo e terrível nesse processo. É um filme adulto, feito para adultos. Não há aqui a hipocrisia da tentativa de beatificação da mocinha, que tem apetite sexual e explora isso como qualquer pessoa normal. E o diretor apresenta a solidão sentida por ela expondo suas sessões diárias de masturbação, o que chocou algumas pessoas na plateia do cinema onde o assisti. Com a intimidade vista desse ângulo tão próximo, a empatia é inevitável e a compaixão pela protagonista, que inclusive é muda, se faz fluir sem necessariamente usar o aspecto da piedade, colocando em pauta sua necessidade simples, humana e carnal de ser notada e ter alguém consigo sem vitimizar a “princesa” em questão.
Apesar de dar camadas aos personagens, Del Toro o faz de maneira simples e natural. Não há grandes segredos que são escondidos do público, e isso não é nem de longe um problema; pelo contrário, auxilia na percepção do filme como um esquema de interesses e jogos políticos, onde os amantes desafortunados (que não são do distrito 13) precisam salvar um ao outro e fugirem para ficar juntos. Não é errado comparar essa obra com a consagrada peça de William Shakespeare, a famosa 'Romeu e Julieta', e nem tampouco afirmar que esse é o Romeu e Julieta do nosso século até o momento (como 'Titanic' foi para o século XX). A sutileza como o relacionamento entre a bela e a fera é criado, tendo como base a curiosidade e refeições de ovos cozidos à beira do tanque, é o que encanta. Coisas simples, atitudes comuns, que ganham um significado contemplativo de intimidade, são o que leva a aproximação de ambos do nível de inaceitável até o de plausível.
E como toda a obra shakespeariana, o vilão tem que ser, sobretudo, a circunstância. O figurão vivido por Michael Shannon não é um malvado da Disney, cujo interesse é separar o casal a qualquer custo só para ter o prazer de ver a infelicidade deles. Há, aqui, questões muito maiores em jogo. Separá-los é apenas um efeito colateral da função que ele empenha no governo americano, para impedir que a “tecnologia” do anfíbio caia nas mãos dos russos. Política e guerra são o que dá o tom do cenário onde o improvável casal se encontra, e burlar isso é o impasse a ser superado. E Shannon dá as faces de um homem que é tão vítima das circunstâncias quanto o casal vivido por Sally Hawkins e Doug Jones, levando os espectadores por uma igual empatia ao entregar o profissional pressionado a resolver as questões que lhe foram empenhadas.
Octavia Spencer é, novamente, Octavia Spencer - e isso é muito bom! A amiga tagarela acaba sendo não só o alívio cômico como também a voz da protagonista, e sua relação com ela é uma das coisas mais gostosas de se ver em tela. Há até uma ligeira referência ao filme ‘Histórias Cruzadas’, na cena em que as zeladoras vão limpar sangue do chão e Zelda (a propósito, esse filme tem referências também à Nintendo, com uma personagem chamada Zelda [Octavia Spencer] e uma personificação abstrata de Zora) diz que não tem problemas com o cocô - quem assistiu ao filme de 2011, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante (categoria que ela também concorre por 'A Forma da Água') pegou a referência.
Mas o ponto mais alto da produção se dá em sua técnica. Fotografia, cenografia, montagem, edição e maquiagem são deslumbrantes, beirando o irretocável. E a trilha sonora do excelente Alexandre Desplat se faz um novo ícone dentro da indústria. O filme é quase um musical, com canções e citações visuais a filmes que são velhos conhecidos do grande público. E para os brasileiros, Carmen Miranda faz as honras e canta divinamente seu Chica Chica Boom Chic, que a destaca nas versões legendadas que estão em exibição nos cinemas.
Entretanto, apesar de belo e hipnotizante, 'A Forma da Água' é vítima de sua própria grandeza. O filme decepciona um pouco, não por sua qualidade - que é imensa -, mas pela expectativa gerada ao redor dele. O hype atrapalha a experiência de assisti-lo despretensiosamente, e isso gera uma lamentável tristeza em quem queria se surpreender com essa poesia audiovisual. A assinatura de Del Toro, tanto no aspecto quanto em sua percepção de mundo, é o que dá para a produção o seu glamour. 'A Forma da Água' é um filme que usa as trevas (no sentido não-demoníaco da palavra) para apresentar a luz, no lugar mais remoto e da maneira mais ousada que se pode imaginar. Agora só nos resta esperar para saber o que a Academia pensa sobre ele.
Sobre ovos cozidos, Nintendo, masturbação e Carmen Miranda.
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Há uma cena, logo no começo de 'A Forma da Água', em que uma fábrica de chocolates pega fogo. O incêndio não é mostrado, apenas comentado, e as palavras do personagem de Richard Jenkins, ao sentir o cheiro de cacau torrado, são uma perfeita descrição aplicável também ao filme como um todo: “tragédia e deleite”, ele diz.
O novo filme de Guillermo Del Toro passa longe de ser somente uma apologia à bestialidade; ele é uma sinfonia do impossível, que se empenha em tornar louvável o absurdo presente no ato de se apaixonar, sem esquecer o que há de belo e terrível nesse processo. É um filme adulto, feito para adultos. Não há aqui a hipocrisia da tentativa de beatificação da mocinha, que tem apetite sexual e explora isso como qualquer pessoa normal. E o diretor apresenta a solidão sentida por ela expondo suas sessões diárias de masturbação, o que chocou algumas pessoas na plateia do cinema onde o assisti. Com a intimidade vista desse ângulo tão próximo, a empatia é inevitável e a compaixão pela protagonista, que inclusive é muda, se faz fluir sem necessariamente usar o aspecto da piedade, colocando em pauta sua necessidade simples, humana e carnal de ser notada e ter alguém consigo sem vitimizar a “princesa” em questão.
Apesar de dar camadas aos personagens, Del Toro o faz de maneira simples e natural. Não há grandes segredos que são escondidos do público, e isso não é nem de longe um problema; pelo contrário, auxilia na percepção do filme como um esquema de interesses e jogos políticos, onde os amantes desafortunados (que não são do distrito 13) precisam salvar um ao outro e fugirem para ficar juntos. Não é errado comparar essa obra com a consagrada peça de William Shakespeare, a famosa 'Romeu e Julieta', e nem tampouco afirmar que esse é o Romeu e Julieta do nosso século até o momento (como 'Titanic' foi para o século XX). A sutileza como o relacionamento entre a bela e a fera é criado, tendo como base a curiosidade e refeições de ovos cozidos à beira do tanque, é o que encanta. Coisas simples, atitudes comuns, que ganham um significado contemplativo de intimidade, são o que leva a aproximação de ambos do nível de inaceitável até o de plausível.
E como toda a obra shakespeariana, o vilão tem que ser, sobretudo, a circunstância. O figurão vivido por Michael Shannon não é um malvado da Disney, cujo interesse é separar o casal a qualquer custo só para ter o prazer de ver a infelicidade deles. Há, aqui, questões muito maiores em jogo. Separá-los é apenas um efeito colateral da função que ele empenha no governo americano, para impedir que a “tecnologia” do anfíbio caia nas mãos dos russos. Política e guerra são o que dá o tom do cenário onde o improvável casal se encontra, e burlar isso é o impasse a ser superado. E Shannon dá as faces de um homem que é tão vítima das circunstâncias quanto o casal vivido por Sally Hawkins e Doug Jones, levando os espectadores por uma igual empatia ao entregar o profissional pressionado a resolver as questões que lhe foram empenhadas.
Octavia Spencer é, novamente, Octavia Spencer - e isso é muito bom! A amiga tagarela acaba sendo não só o alívio cômico como também a voz da protagonista, e sua relação com ela é uma das coisas mais gostosas de se ver em tela. Há até uma ligeira referência ao filme ‘Histórias Cruzadas’, na cena em que as zeladoras vão limpar sangue do chão e Zelda (a propósito, esse filme tem referências também à Nintendo, com uma personagem chamada Zelda [Octavia Spencer] e uma personificação abstrata de Zora) diz que não tem problemas com o cocô - quem assistiu ao filme de 2011, que lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante (categoria que ela também concorre por 'A Forma da Água') pegou a referência.
Mas o ponto mais alto da produção se dá em sua técnica. Fotografia, cenografia, montagem, edição e maquiagem são deslumbrantes, beirando o irretocável. E a trilha sonora do excelente Alexandre Desplat se faz um novo ícone dentro da indústria. O filme é quase um musical, com canções e citações visuais a filmes que são velhos conhecidos do grande público. E para os brasileiros, Carmen Miranda faz as honras e canta divinamente seu Chica Chica Boom Chic, que a destaca nas versões legendadas que estão em exibição nos cinemas.
Entretanto, apesar de belo e hipnotizante, 'A Forma da Água' é vítima de sua própria grandeza. O filme decepciona um pouco, não por sua qualidade - que é imensa -, mas pela expectativa gerada ao redor dele. O hype atrapalha a experiência de assisti-lo despretensiosamente, e isso gera uma lamentável tristeza em quem queria se surpreender com essa poesia audiovisual. A assinatura de Del Toro, tanto no aspecto quanto em sua percepção de mundo, é o que dá para a produção o seu glamour. 'A Forma da Água' é um filme que usa as trevas (no sentido não-demoníaco da palavra) para apresentar a luz, no lugar mais remoto e da maneira mais ousada que se pode imaginar. Agora só nos resta esperar para saber o que a Academia pensa sobre ele.
Super Vale Ver!
DIREÇÃO
- Guillermo del Toro
EQUIPE TÉCNICA
Roteiro: Guillermo del Toro, Vanessa Taylor
Produção: Guillermo del Toro, J. Miles Dale
Fotografia: Dan Laustsen
Trilha Sonora: Alexandre Desplat
Estúdio: Bull Productions, Double Dare You (DDY), Fox Searchlight Pictures
Montador: Sidney Wolinsky
Distribuidora: Fox Film
ELENCO
Alexey Pankratov, Allegra Fulton, Brandon McKnight, Cameron Laurie, Clyde Whitham, Cody Ray Thompson, Dan Lett, Danny Waugh, David Hewlett, Deney Forrest, Diego Fuentes, Doug Jones, Dru Viergever, Edward Tracz, Evgeny Akimov, Jayden Greig, John Kapelos, Jonelle Gunderson, Karen Glave, Lauren Lee Smith, Madison Ferguson, Martin Roach, Marvin Kaye, Michael Shannon, Michael Stuhlbarg, Morgan Kelly, Nick Searcy, Nigel Bennett, Octavia Spencer, Richard Jenkins, Sally Hawkins, Sergey Nikonov, Shaila D'Onofrio, Stewart Arnott, Vanessa Oude-Reimerink, Wendy Lyon
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