Livro vs. Filme - 'Anjos & Demônios'
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Já falamos sobre todo o teor de nerdice presente no novo filme de Steven Spielberg comparando os elementos de 'Jogador N°1’, e entramos em polêmicas ao comentar a abordagem de Darren Aronofsky para a história de Noé. Continuando nossa coluna Livro vs Filme, trataremos novamente a religião - só que dessa vez em um embate épico contra a ciência, relatado no romance Anjos & Demônios.
Livro: Anjos & Demônios, escrito por Dan Brown
Filme: Anjos & Demônios, dirigido por Ron Howard
Quando o assunto é adaptação, nota-se que os livros são costumeiramente mais complexos do que seus respectivos filmes. Hoje veremos que a densidade do assunto tratado no primeiro livro do icônico personagem Robert Langdon, do imaginário de Dan Brown, é imensamente notável e faz valer o conceito de que livros são mais completos. O romance policial (que é o melhor dentre os muitos que já li) poderia ser “somente” um relato de uma seita satânica que se volta contra a maior entidade religiosa do mundo, mas a obra ousa e vai além ao propor um debate sobre a importância da ciência e da religião na vida das pessoas, e faz isso de uma maneira que é ao mesmo tempo intimista e explosiva.
Dan Brown cria suas tramas a partir de elementos históricos e teorias conspiratórias, sempre buscando o fio de lógica que brota em ascensão a partir da incoerência. Sua dinâmica criou uma fórmula - que alguns dizem já estar gasta, devido ao uso excessivo pelo próprio Brown - e vendeu milhões de cópias mundo afora. Sua obra mais famosa, 'O Código DaVinci', mantém o mesmo padrão de excelência escrita e prende o leitor desde sua primeira página. E se tem uma coisa em que Brown também é mestre, é em pisar no calo da Igreja Católica. Com 'Anjos & Demônios', ele desbrava as entranhas do menor país do mundo - que também é uma das maiores potências econômicas: o Vaticano.
O livro narra um cenário conturbado, onde a eleição do novo Papa (o Conclave) ocorre simultaneamente com a maior ameaça que a Igreja já teve: o retorno dos Illuminati. Tida como seita demoníaca, a organização dos Illuminati (que era a elite dos pensadores e cientistas do movimento do Iluminismo) resolveu se vingar do massacre imposto pela Igreja séculos antes, e sequestrou os quatro cardeais com maior probabilidade de serem eleitos Papa (os Preferiti) e plantou uma bomba dentro dos muros da Cidade. A Antimatéria, criada nos laboratórios da CERN com um potente acelerador de partículas, é a arma usada pelos iluminados em sua jornada de vingança por duas razões: ser puramente ciência e ser mais nociva do que uma bomba atômica. No entanto, Robert Langdon é chamado para encontrar o esconderijo secreto da organização e impedir que o massacre tenha o pior dos desfechos.
O livro segue uma linha investigativa, obviamente, mas não deixa de lado sua principal função filosófica, que é promover o diálogo através da busca por respostas. O homem pode brincar de ser Deus? Se eu posso fazer alguma coisa, então tenho a obrigação de fazê-la? A ciência está indo longe demais? Até que ponto o preceito de “olho por olho dente por dente” é tido como justiça? Perguntas e mais perguntas, girando em uma mesa redonda criada pelo autor que presenteia seus leitores com diálogos inteligentíssimos e argumentos defensáveis vindos de ambos os lados do conflito. Era de se esperar que o filme mantivesse o mesmo nível em sua proposta, mas…
Muita coisa se perdeu no caminho da construção da adaptação. A greve dos roteiristas em 2008 foi um dos piores agravantes, tendo a troca de Akiva Goldsman pelo infiel David Koepp (digo infiel porque seus roteiros costumam ter o mínimo de semelhança com os livros quando uma adaptação lhe é encomendada). Goldsman já havia escrito o roteiro de 'O Código DaVinci’, lançado em 2006 (a sequência de 'Anjos & Demônios’ foi levada aos cinemas primeiro por causa do sucesso estrondoso e polêmico do livro que sugere uma redefinição ao que entendemos como o Santo Graal), e a combinação das soluções que propôs com a visão do direitor Ron Howard havia resultado em uma adaptação excelente (na edição estendida - isso é assunto para um próximo artigo da coluna), porém, como mexeram no time que estava ganhando, a adaptação de 'Anjos & Demônios’ se tornou uma verdadeira bagunça.
Inevitavelmente, alguns pontos que podem ser spoilers para alguns leitores precisam ser tratados aqui. Fica o aviso.
Tem personagem que muda de nome, gente que morre no livro mas não morre no filme (e vice-versa), gente que é criada para o filme e gente que era importantíssima no desenvolvimento do livro que no filme nem sequer existe - Maximilian Kholer, que é a personificação do professor Xavier dos desenhos de X-Men Evolution, fez falta. A caracterização dos personagens muda drasticamente (em especial a de Vittoria Vetra) e o caráter de muitos deles conflita com o proposto inicial. Mas a maior perda da trama está na sua incapacidade de reproduzir os dilemas emocionais na tela, mesmo sendo perfeitamente possível. E é nesse ponto que faltou a explicação principal.
O camerlengo Carlo Ventresca (chamado no filme de Patrick McKenna e interpretado por Ewan McGregor) promovia os diálogos e discursos mais interessantes e envolventes, conduzia as cenas como quem domina uma fera e se fazia uma luz no meio do tumulto caótico que a crise da retaliação Illuminati criou. Uma das melhores cenas do livro é a que ele interrompe o Conclave e discursa ao vivo para os padres e para milhões de fiéis através de uma emissora de televisão que levou consigo. Seu auto-martírio e quase beatificação são a prova de seu carisma e de como ele era influente. Mas, como ninguém é perfeito, ele era o vilão.
Não se explica direito, no filme, o que levou o camerlengo a cometer atrocidades e permitir mortes em nome da religião. No livro há um diálogo acalorado que expõe seu lado, que é também onde se descobre a maior das ironias - que é a razão, inclusive, do suicídio do camareiro: o Papa teve um filho. Resumindo, o camerlengo era filho do finado Papa, que foi envenenado e morto pelo mesmo, e sua vida é fruto do amor entre o santo padre e uma freira. A ironia que se esconde aí é que, para manter seus votos castos por amor a Deus, eles tiveram seu filho através do processo de inseminação artificial. Ou seja, a ciência que o camerlengo combatia era também o caminho pela qual ele ganhou vida. Esse ponto crucial da história, que justifica o show de horrores que ocorreu em vinte e quatro horas, ficou de lado.
Muitas outras coisas legais do livro foram adulteradas. O diamante Illuminati, o sequestro de Vittoria, o sangue frio do Hassassin (que no filme é um cara gente boa, que deixou Langdon e Vetra saírem vivos de uma emboscada), e até mesmo a melancólica e sensível morte de Baggia, o cardeal morto na Piazza Navona, com o ambigrama “Water” queimado no peito. Sinceramente, quando vi essa cena na estreia do filme (em 15 de Maio de 2009) tive vontade de entrar na tela e afogar o velho com as minhas próprias mãos. A morte mais “divina” de toda a trama foi simplesmente trocada por um ato de heroísmo coletivo feito por pessoas que nem estavam por perto no livro.
O filme 'Anjos & Demônios’ foi uma infeliz vítima das circunstâncias da indústria na ocasião de sua produção. Sofreu danos no desenvolvimento por causa de retalhos na construção do roteiro, mas, apesar de apresentar suas falhas, é visível seu esforço em se manter paralelo ao material original escrito por Brown. Acabou que não ficou tão próximo do livro quanto 'O Código DaVinci’ e nem tão distante quanto 'Inferno’, de 2016. Nas próximas semanas, analisaremos também essas duas outras adaptações, mas antes veremos, já na próxima matéria da coluna, as semelhanças da obra-prima de Ian McEwan titulada 'Reparação’.
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Já falamos sobre todo o teor de nerdice presente no novo filme de Steven Spielberg comparando os elementos de 'Jogador N°1’, e entramos em polêmicas ao comentar a abordagem de Darren Aronofsky para a história de Noé. Continuando nossa coluna Livro vs Filme, trataremos novamente a religião - só que dessa vez em um embate épico contra a ciência, relatado no romance Anjos & Demônios.
Livro: Anjos & Demônios, escrito por Dan Brown
Filme: Anjos & Demônios, dirigido por Ron Howard
Quando o assunto é adaptação, nota-se que os livros são costumeiramente mais complexos do que seus respectivos filmes. Hoje veremos que a densidade do assunto tratado no primeiro livro do icônico personagem Robert Langdon, do imaginário de Dan Brown, é imensamente notável e faz valer o conceito de que livros são mais completos. O romance policial (que é o melhor dentre os muitos que já li) poderia ser “somente” um relato de uma seita satânica que se volta contra a maior entidade religiosa do mundo, mas a obra ousa e vai além ao propor um debate sobre a importância da ciência e da religião na vida das pessoas, e faz isso de uma maneira que é ao mesmo tempo intimista e explosiva.
Dan Brown cria suas tramas a partir de elementos históricos e teorias conspiratórias, sempre buscando o fio de lógica que brota em ascensão a partir da incoerência. Sua dinâmica criou uma fórmula - que alguns dizem já estar gasta, devido ao uso excessivo pelo próprio Brown - e vendeu milhões de cópias mundo afora. Sua obra mais famosa, 'O Código DaVinci', mantém o mesmo padrão de excelência escrita e prende o leitor desde sua primeira página. E se tem uma coisa em que Brown também é mestre, é em pisar no calo da Igreja Católica. Com 'Anjos & Demônios', ele desbrava as entranhas do menor país do mundo - que também é uma das maiores potências econômicas: o Vaticano.
O livro narra um cenário conturbado, onde a eleição do novo Papa (o Conclave) ocorre simultaneamente com a maior ameaça que a Igreja já teve: o retorno dos Illuminati. Tida como seita demoníaca, a organização dos Illuminati (que era a elite dos pensadores e cientistas do movimento do Iluminismo) resolveu se vingar do massacre imposto pela Igreja séculos antes, e sequestrou os quatro cardeais com maior probabilidade de serem eleitos Papa (os Preferiti) e plantou uma bomba dentro dos muros da Cidade. A Antimatéria, criada nos laboratórios da CERN com um potente acelerador de partículas, é a arma usada pelos iluminados em sua jornada de vingança por duas razões: ser puramente ciência e ser mais nociva do que uma bomba atômica. No entanto, Robert Langdon é chamado para encontrar o esconderijo secreto da organização e impedir que o massacre tenha o pior dos desfechos.
O livro segue uma linha investigativa, obviamente, mas não deixa de lado sua principal função filosófica, que é promover o diálogo através da busca por respostas. O homem pode brincar de ser Deus? Se eu posso fazer alguma coisa, então tenho a obrigação de fazê-la? A ciência está indo longe demais? Até que ponto o preceito de “olho por olho dente por dente” é tido como justiça? Perguntas e mais perguntas, girando em uma mesa redonda criada pelo autor que presenteia seus leitores com diálogos inteligentíssimos e argumentos defensáveis vindos de ambos os lados do conflito. Era de se esperar que o filme mantivesse o mesmo nível em sua proposta, mas…
Muita coisa se perdeu no caminho da construção da adaptação. A greve dos roteiristas em 2008 foi um dos piores agravantes, tendo a troca de Akiva Goldsman pelo infiel David Koepp (digo infiel porque seus roteiros costumam ter o mínimo de semelhança com os livros quando uma adaptação lhe é encomendada). Goldsman já havia escrito o roteiro de 'O Código DaVinci’, lançado em 2006 (a sequência de 'Anjos & Demônios’ foi levada aos cinemas primeiro por causa do sucesso estrondoso e polêmico do livro que sugere uma redefinição ao que entendemos como o Santo Graal), e a combinação das soluções que propôs com a visão do direitor Ron Howard havia resultado em uma adaptação excelente (na edição estendida - isso é assunto para um próximo artigo da coluna), porém, como mexeram no time que estava ganhando, a adaptação de 'Anjos & Demônios’ se tornou uma verdadeira bagunça.
Inevitavelmente, alguns pontos que podem ser spoilers para alguns leitores precisam ser tratados aqui. Fica o aviso.
Tem personagem que muda de nome, gente que morre no livro mas não morre no filme (e vice-versa), gente que é criada para o filme e gente que era importantíssima no desenvolvimento do livro que no filme nem sequer existe - Maximilian Kholer, que é a personificação do professor Xavier dos desenhos de X-Men Evolution, fez falta. A caracterização dos personagens muda drasticamente (em especial a de Vittoria Vetra) e o caráter de muitos deles conflita com o proposto inicial. Mas a maior perda da trama está na sua incapacidade de reproduzir os dilemas emocionais na tela, mesmo sendo perfeitamente possível. E é nesse ponto que faltou a explicação principal.
O camerlengo Carlo Ventresca (chamado no filme de Patrick McKenna e interpretado por Ewan McGregor) promovia os diálogos e discursos mais interessantes e envolventes, conduzia as cenas como quem domina uma fera e se fazia uma luz no meio do tumulto caótico que a crise da retaliação Illuminati criou. Uma das melhores cenas do livro é a que ele interrompe o Conclave e discursa ao vivo para os padres e para milhões de fiéis através de uma emissora de televisão que levou consigo. Seu auto-martírio e quase beatificação são a prova de seu carisma e de como ele era influente. Mas, como ninguém é perfeito, ele era o vilão.
Não se explica direito, no filme, o que levou o camerlengo a cometer atrocidades e permitir mortes em nome da religião. No livro há um diálogo acalorado que expõe seu lado, que é também onde se descobre a maior das ironias - que é a razão, inclusive, do suicídio do camareiro: o Papa teve um filho. Resumindo, o camerlengo era filho do finado Papa, que foi envenenado e morto pelo mesmo, e sua vida é fruto do amor entre o santo padre e uma freira. A ironia que se esconde aí é que, para manter seus votos castos por amor a Deus, eles tiveram seu filho através do processo de inseminação artificial. Ou seja, a ciência que o camerlengo combatia era também o caminho pela qual ele ganhou vida. Esse ponto crucial da história, que justifica o show de horrores que ocorreu em vinte e quatro horas, ficou de lado.
Muitas outras coisas legais do livro foram adulteradas. O diamante Illuminati, o sequestro de Vittoria, o sangue frio do Hassassin (que no filme é um cara gente boa, que deixou Langdon e Vetra saírem vivos de uma emboscada), e até mesmo a melancólica e sensível morte de Baggia, o cardeal morto na Piazza Navona, com o ambigrama “Water” queimado no peito. Sinceramente, quando vi essa cena na estreia do filme (em 15 de Maio de 2009) tive vontade de entrar na tela e afogar o velho com as minhas próprias mãos. A morte mais “divina” de toda a trama foi simplesmente trocada por um ato de heroísmo coletivo feito por pessoas que nem estavam por perto no livro.
O filme 'Anjos & Demônios’ foi uma infeliz vítima das circunstâncias da indústria na ocasião de sua produção. Sofreu danos no desenvolvimento por causa de retalhos na construção do roteiro, mas, apesar de apresentar suas falhas, é visível seu esforço em se manter paralelo ao material original escrito por Brown. Acabou que não ficou tão próximo do livro quanto 'O Código DaVinci’ e nem tão distante quanto 'Inferno’, de 2016. Nas próximas semanas, analisaremos também essas duas outras adaptações, mas antes veremos, já na próxima matéria da coluna, as semelhanças da obra-prima de Ian McEwan titulada 'Reparação’.
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