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Livro Vs. Filme : 'Noé', de Darren Aronofsky

Por Vinícius Martins @cinemarcante


Na coluna Livro vs. Filme dessa semana vamos entrar em uma zona de muita polêmica. Dizem que há três coisas sobre as quais nunca se deve conversar. São elas política, futebol e religião. Hoje, vamos colocar o dedo na ferida desse último assunto e apontar os pontos mais polêmicos quanto à controversa adaptação escrita e dirigida pelo realizador de ‘Cisne Negro’ (2011), que levou multidões aos cinemas e gerou muita discussão no meio cristão.

Livro: Gênesis, escrito por Moisés
Filme: Noé, dirigido por Darren Aronofsky



Quando se assiste a uma adaptação, é de se esperar que existam algumas mudanças para melhor adequar o material à mídia na qual está sendo transferido. Todavia, espera-se também que haja alguma coerência com o conteúdo original, deixando pelo menos uma parcela significativa de semelhanças para manter o público familiarizado com o que está sendo exibido. Esse não é o caso de ‘Noé’ (2014), de Darren Aronofsky, que parece ter somente o nome de seu protagonista em paralelo com o do personagem bíblico.

Não vamos entrar aqui nos méritos do debate quanto a o que é visto como realidade ou não na história de Noé - isso vai da crença e do entendimento de cada um. Particularmente, vejo evidências de que o relato bíblico é real, mas vou ignorar minha própria visão sobre o assunto para transcrever aqui os fatores que impedem essa adaptação de ser boa.



Antes de prosseguir, gostaria de expor aqui um comentário feito por um dos roteiristas de outro filme bíblico de 2014, ‘Êxodo: Deuses e Reis’, dirigido pelo majestoso Ridley Scott. Na véspera do lançamento do filme, o roteirista disse que “as mudanças em relação à Bíblia são nada mais do que a sua versão para os fatos, e isso não é fazer diferente das tantas religiões cristãs, que trazem consigo cada uma a sua visão acerca dos fatos narrados no livro Sagrado, e é justamente por isso que existe essa diversidade de denominações”. Poderíamos usar esse argumento para justificar as mudanças em ‘Noé’, mas infelizmente isso também não se aplica aqui. As mudanças, meus amigos, são grandes demais.

Foi audaciosa a ideia de Aronofsky de fazer um épico bíblico, isso é inquestionável. Acontece que é igualmente inquestionável o quão arrogante esse pressuposto é, já que ele é ateu. Para que você tenha uma noção de quão estranho isso é, tente imaginar uma figura machista e homofóbica sendo contratada para dirigir ‘O Segredo de Brokeback Mountain’ ou o premiado ‘Moonlight – Sob a Luz do Luar’. É difícil acreditar que a mesma delicadeza e o mesmo sentido na mensagem será mantido. Provavelmente será, na verdade, um ato de criminalização ao homossexualismo ao invés de um relato de amor entre duas pessoas do mesmo sexo. Agora contextualize para o cristianismo. Para quem quer ir ao cinema assistir a um filme que conte a história que ficou no imaginário coletivo desde a infância, sem dúvida é decepcionante encontrar um resultado como o entregue na produção protagonizada por Russell Crowe.


Russel Crowe na pele do herói bíblico Noé

Imagine que você leu os livros da saga Harry Potter e vai assistir ao filme no cinema, mas ao invés do embate épico do bem contra o mal no final, você é surpreendido com uma cena onde Harry e Voldemort se beijam, se assumem um casal e afirmam que estava tudo combinado desde o começo. Não seria uma surpresa recheada de frustração? Pois foi assim que me senti quando saí do cinema após ver que Noé recebeu ajuda de anjos caídos em corpos de pedra (e que foram absolvidos na ocasião do dilúvio, retornando aos céus), indo totalmente no sentido contrário ao do relato bíblico. A história não seguia em paralelo como ‘Êxodo: Deuses e Reis’ viria a fazer alguns meses depois, mas ia a toda a velocidade rumo a uma colisão frontal, um choque violento a fim de atropelar e deturpar totalmente a trama do velho servo de Deus.

Por final, a figura de Noé ficou tida como a de um velho caduco, possuído por uma ira descomunal contra a humanidade que ainda restava entre seus familiares; e a figura de Deus deixou de ser a de entidade bondosa e paciente e passou a ser a do tirano cruel que manda matar criancinhas – contradizendo todo o objetivo divino proposto a Noé antes mesmo de ele ter começado a construir a arca, que era o de repovoar e encher a terra com uma boa descendência. Ao invés de convidar os vizinhos para a arca, pregando mensagens de arrependimento enquanto pregava seus pregos na madeira, o velho homem desdenha dos demais e é visto aqui com a presunção e arrogância de um homem que não tem certeza sobre os próprios atos.

De um modo geral, a única coisa que fica fiel ao livro bíblico é a ideia de que um velho construiu um barco e salvou a família. Teria sido mais justo chamar o filme por outro nome que não fosse o de Noé, e aí provavelmente ele seria mais bem visto e aceito pelos tantos que, assim como eu, foram levados ao cinema com a promessa de assistir uma encenação de uma história bíblica, e não a um projeto de monólogo vivido por um velho esquizofrênico.




'Papo de Cinemateca - Muito Cinema pra Todo Mundo'

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