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Livro Vs Filme - 'Êxodo : Deuses e Reis' | Parte 2

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


Continuando a falar sobre 'Êxodo: Deuses e Reis’, a coluna Livro vs Filme hoje abordará alguns aspectos que distorcem positiva e negativamente a jornada de Moisés, e trataremos os principais pontos que empobrecem essa adaptação. 

Livro: Êxodo, escrito por Moisés.
Filme: Êxodo: Deuses e Reis, dirigido por Ridley Scott.


Quando se assiste um filme com embasamento bíblico espera-se que, obviamente, quem o fez tenha lido a Bíblia. Conforme vimos na matéria sobre Noé, a distorção da história despropositou o dilúvio e a mensagem pregada, mostrando Noé como insano e Deus como um tirano perverso, bem diferente do que se vê na história original. No caso de Moisés na superprodução do agnóstico Ridley Scott, a trama se manteve bem mais fiel em aspectos gerais, sem inverter a orientação dos personagens entre mocinhos e vilões como fez o filme de Darren Aronofsky, mas ainda assim adulterou a importância de algumas coisas. Vamos ao ponto mais polêmico, mas que passa batido pela maioria das pessoas que não se ligam a detalhes.

Em nenhum momento na Bíblia você encontrará Deus ditando o que deve ser escrito. Conforme a própria Bíblia afirma, toda a escritura é inspirada; todavia, não houve um momento sequer em que Deus virasse pra alguém e dissesse: “eu vou falando e você escreve aí o que eu digo”. Prova disso são, por exemplo, algumas histórias bíblicas acerca dos milagres de Cristo, que se repetem em versões que acrescentam elementos ao que é contado sem contradizer umas às outras (Jesus andando sobre as águas é uma delas). Se Deus tivesse ditado algo, com suas próprias palavras, então não teríamos uma diferença tão grande no modelo de escrita da Bíblia, onde vemos Paulo, um doutor em teologia, dissertando seus livros de maneira plena e impecável, enquanto João, o discípulo amado, anteriormente tido como o filho do trovão, cometia tantos erros de concordância em sua gramática primária de pescador. Os profetas - título cujo significado real é “mensageiro” - sempre escreviam o que viviam, fossem suas obras boas ou perversas, e Deus sempre mostrava a mensagem que queria que fosse registrada quando quem a viveu não teve condições de escrevê-la, de modo que o registro da mesma fosse feito por algum fiel encarregado de sua obra.


Porém, quando foi necessário, o próprio Deus também escreveu. Só há três momentos citados na Bíblia em que Deus escreve algo. Temos a ocasião do apedrejamento da prostituta, onde Deus, na forma de Jesus Cristo, escreve na areia os pecados daqueles que a queriam apedrejar; temos antes disso Deus escrevendo uma mensagem de advertência na parede de Babilônia, que foi traduzida pelo profeta Daniel, deixando um aviso claro ao rei Belsazar; e ainda antes disso, Deus escreveu com seu dedo os dez mandamentos, no monte Sinai, em duas tábuas e as entregou a Moisés. Entretanto, ao contrário do que se lê na Bíblia, no filme vemos Deus (que aparece personificado na forma de uma criança, um garotinho de expressão mimada) mandando Moisés ir escrevendo a Lei com uma talhadeira e uma marreta enquanto Ele preparava um chá.

O que isso muda em relação a doutrinas bíblicas? Tudo. A criação da lei moral sai da esfera de um propósito maior, divino, de direcionar o homem a Deus, e entra na classe do ridículo, do remendo, quase como resultado de uma conversa de final de tarde cuja finalidade é só dizer para a humanidade o que é correto e o que não é. Pode parecer bobeira, mas tira todo o crédito do planejamento de Deus e alça na lei um aspecto de improviso.

Além desse ponto, há no filme questões de profecias do relacionamento entre Moisés e Ramsés, e da opção de Scott em tornar o seu Moisés em um guerreiro quando a bíblia revela, na verdade, que ele não era lá um cara muito de tomar a frente das coisas. Moisés era gago (pelo menos é isso o que a Bíblia leva a crer ao descrever seu problema com a fala), e seu irmão Arão se tornou seu porta-voz (no filme Arão é simplesmente esquecido). E ao trocar o famoso cajado de Moisés por uma espada, Scott invoca um guerreiro que, tecnicamente, nunca existiu, tirando toda a simbologia da figura de um pastor que conduz seu rebanho deserto adentro.


Uma coisa que ficou mal resolvida e mal explicada foi a surpresa de Ramsés sobre a origem de seu irmão. O nome Moisés significa, literalmente, “tirado das águas”. Mas naquele tempo, já que o idioma falado é o hebraico, todos se referiam a Moisés dessa forma. Então, para eles, o nome Moisés não era um nome com um significado, mas sim uma descrição atribuída à sua origem. Ramsés, na língua dele, não dizia 'Meu irmão Moisés', mas sim “Meu irmão Tirado das Águas”. Sendo assim, como Ramsés não saberia a origem escrava de Moisés quando o seu próprio nome já informava isso? Em algum momento de sua vida ele certamente ouviu a história ou pelo menos questionou a razão de ser esse o nome do irmão. A surpresa de Ramsés, assim como sua indignação (que no filme foi o que provocou a saída de Moisés do Egito, e não o fato de ele ter cometido o crime de matar dois soldados) fica incoerente dentro de si mesma, como se a história anulasse sua própria tradução. Os soldados mortos são, no filme, somente figurantes descartáveis até ao próprio faraó.

A versão terrorista que se faz de Moisés ao seu retorno ao Egito após o exílio é até boa, com ares curiosos e criminosos recaindo sobre ele por parte das autoridades guerrilheiras, porém, se julgarmos a caracterização do protagonista (sem insistir no assunto da etnia dos atores), percebe-se onde o filme comete seu maior pecado. Analisando a cronologia da história de vida de Moisés, podemos ver que sua partida do Egito ocorreu quando ele tinha quarenta anos. No deserto, ele viveu por mais quarenta até a ocasião da sarça ardente, quando foi convocado por Deus a retornar e libertar o seu povo. E depois disso ainda se passaram mais quarenta anos de peregrinação no deserto rumo à Terra Prometida. Portanto, Moisés viveu pelo menos cento e vinte anos, sendo que já idoso, na casa dos oitenta, foi quando ele liderou o povo hebreu e atravessou o mar vermelho. Só que Hollywood (e a Record também, com sua novela fanfarrona) parece não ler a Bíblia e insiste em fazer filmes em que o Moisés de oitenta anos tenha cara de um tiozão de trinta. Faltou esse cuidado com a figura do homem, que o fragilizaria e tornaria sua batalha mais fiel ao que foi lido. Na verdade, faltou muita coisa.

Falta hoje em dia a coragem necessária para fazer um filme bíblico como realmente está escrito, sem apelar para fantasias ou alterações poéticas; a Bíblia já é uma literatura fantástica por si só (lide “fantástica”, e não “fantasiosa”). Falta a indústria do cinema ter um trabalho primoroso de fidelidade com esse gênero como o grande Luiz Fernando Carvalho teve ao adaptar Dom Casmurro em 2008, mas isso já é assunto para uma próxima coluna...





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