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Livro Vs. Filme : 'Dom Casmurro'

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


A coluna Livro vs Filme de hoje é uma edição especial por dois motivos. O primeiro deles é que será um combo comparativo entre livro, filme e especial para a televisão; o segundo é que também completam-se, hoje, dez anos desde a primeira exibição de ‘Capitu’ na Globo. Em comemoração a essa primeira década de existência, comentamos 'Capitu’, 'Dom’ e a obra que lhes originou, 'Dom Casmurro’. Obviamente, este artigo estará recheado de spoilers (em sua maioria leves), então destacamos aqui o aviso.

Livro: Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis
Filme: Dom, dirigido por Moacyr Góes
Série: Capitu, criada por Luiz Fernando Carvalho



Antes de comentarmos os aspectos que aproximam e distanciam as duas abordagens modernas da história, vamos falar rapidamente sobre a primeira adaptação de 'Dom Casmurro’ para as telonas. O filme 'Capitu’, de 1968, dirigido por Paulo Cesar Saraceni e estrelado por Othon Bastos, Raul Cortês, Isabella Cerqueira e Nelson Dantas, é um tanto quanto curioso. Filmado em preto e branco e com o áudio tendo sido gravado posteriormente às filmagens e encaixado na edição, o filme com formato de tela 4:3 transpõe para a tela apenas parte da obra original. O roteiro começa já com Capitu e Bentinho juntos, em sua fase adulta, aproveitando a lua de mel em uma caminhada no meio da natureza, e termina com Capitu saindo de casa com Ezequiel ainda quando criança.

Apesar de não mostrar nem o começo e nem o final propriamente dito, o longa apresenta o contexto da adolescência do casal de protagonistas em áudios off que revelam suas personalidades e o relacionamento que construíram ao longo dos anos desde o começo do flerte. Porém, a abordagem desse filme para a polêmica da suposta traição acaba assumindo um posicionamento, saindo da neutralidade que uma adaptação dessas exigiria, e entregando pistas que levam o público a crer na infidelidade de Capitu através de pequenos trejeitos e expressões faciais da atriz Isabella Cerqueira - como se ela estivesse voluntariamente se colocando em uma posição de culpada enquanto está de costas para Bentinho e de frente para a câmera. Vale a pena dar uma conferida neste material, o filme completo está disponível online no YouTube. Fica a recomendação!

Agora sim, vamos aos destaques de hoje!


➽Livro

Quem conhece Machado de Assis sabe da pegada de ironia que permeia suas obras. Em ‘Dom Casmurro’, no entanto, essa característica está mais sutil e leve, de modo que a ironia bruta se manifeste na interpretação imprecisa que cada leitor vem a ter. Cada um entende a obra ao seu modo, condenando ou defendendo Capitu na acusação de infidelidade contra Bentinho, que é o tal Dom Casmurro a que o título se refere - e também o narrador do livro, explicitando seu ponto de vista sobre os fatos que conduziram sua vida até então. Apesar das conspirações, é praticamente impossível definir com exatidão o que realmente aconteceu, e esse feito é um triunfo inigualável de Machado. Ao final, solitário após tantos abandonos, Bentinho se vê tentando debater com o leitor em uma conversa “franca” os fantasmas que ainda o perseguem.

Aí vindes outra vez, inquieta sombras.



➽Filme

A produção de Moacyr Góes é, na verdade, inspirada em ‘Dom Casmurro’. Não é, como alguns costumam pensar, uma adaptação direta da obra. O livro é citado a todo instante no decorrer do roteiro e o protagonista vivido por Marcos Palmeira desenvolve uma espécie de síndrome Casmurriana, uma paranoia de que sua história está fadada à tragédia assim como o protagonista da obra mais famosa de Machado de Assis. O enredo, apesar de charmoso, se assemelha bastante em alguns aspectos com 'Match Point’ de Woody Allen (único filme que gosto desse diretor) no que diz respeito a escolhas erradas e conflitos internos quanto aos próprios interesses. Bruno Garcia é o Escobar da vez (Miguel) e Maria Fernanda Cândido interpreta a Capitu dessa versão reimaginada (Ana). O filme, lançado em 2003, é contemporâneo se comparado com o período em que o livro foi escrito e a trama original se passa: as últimas décadas do século XIX. O final não segue a risca a ideia do livro, e tenta se fechar em um arco onde a dúvida permanece por escolha e não por indefinição. 

Comecemos por uma célebre tarde de novembro [...]



➽Série

A minissérie de 5 capítulos começou a ser exibida na rede Globo em uma terça-feira, 09 de Dezembro de 2008, e se estendeu até a noite do sábado. O título chamou a atenção por não trazer a referência ao personagem central do livro, mas sim a sua amada. Isso gerou, a princípio, uma impressão de que a trama seria contada pela perspectiva da mesma, talvez até revelando pontos que Machado deixou implícito em sua escrita genial. O que se viu, no entanto, foi uma fidelidade absurda ao texto de Machado com a permanência do ponto de vista de Bentinho (ou Bento Santiago, como foi batizado) e a quebra da quarta parede, permitindo o diálogo direto com o público. O nome da minissérie se faz valer pelo destaque que Capitu tem dentro da história, sendo interpretada com talento e beleza por Letícia Persiles quando jovem e por Maria Fernanda Cândido (de novo!) na fase adulta, após o retorno de Bentinho de seus estudos. As faces de Bentinho antes e depois de se tornar o icônico Dom Casmurro são expressas de forma belíssima e sensível por César Cardadeiro e Michel Melamed, que narra sua jornada conversando com os espectadores com a mesma intensidade com que as palavras de Machado falam com os leitores.

Eis mais um mistério para ajuntar aos tantos outros deste mundo.



➽Adaptações

Julgando as obras enquanto adaptações do livro lançado há mais de um século, parece injusto querer comparar um filme de duas horas com a fidelidade que quatro horas e meia oferecem quando a série é vista de forma sequencial; mas não é nada injusto, pois aqui as adaptações seguem por caminhos e vertentes diferentes, quase como que polaridades opostas. De um lado o filme que se esquiva da fidelidade, se aproveitando da licença poética para homenagear a obra original ao criar uma reação ao livro, e do outro a série que foge da literalidade visual, usando a licença poética em uma função contrária para justamente contar a história do livro, mas de uma maneira mais livre e teatral. Em ambas há elementos que se vêem atualmente no cotidiano - carros motorizados e pichações nos muros são alguns deles -, mas o que compartilham entre si é só isso. O filme se passa em um plano real, onde o livro existe e Machado de Assis é cultuado como referência literária brasileira, enquanto a série é a apresentação audiovisual da mesmíssima história que o livro conta em suas dezenas de capítulos.

Os personagens do filme, apesar de parecidos com os do livro, tem nomes diferentes e respeitam um código de conduta moderno, com elementos comerciais atuais e modelos de relacionamentos igualmente atuais. Sai a inocência de Bentinho e entra a malícia sonhadora de Bento, que já é apresentado ao público como um adulto, noivo, que transa tanto com sua noiva quanto com Capitu sem os dogmas que retratam a cultura da época em que a história do livro se passa. Não há o anseio pelo casamento antes da junção carnal, nem a felicidade do aflorar da própria masculinidade, não. Bento já é um homem feito, e como tal tende a desfrutar de sua independência. Uma das melhores coisas do livro, que é a dinâmica entre os desejos de Bentinho e os conceitos morais e religiosos que o fazem se martirizar devido ao amor que sente, no filme são totalmente jogados de lado. Não há espaço para a devoção, e nem ao endeusamento da figura da mãe, tão devota, a quem Bentinho deve a vida.

Se esses pontos faltam ao filme, na série são tratados como fundamentais. Tudo na adaptação de Luiz Fernando Carvalho ganha profundidade em sua produção técnica; a trilha intensa e sensível de amargor e arrependimento criada por Tim Rescala (a quem já tive o prazer de conhecer e assistir conduzindo uma apresentação sinfônica espetacular com os temas de 'Meu Pedacinho de Chão’ e 'Velho Chico’), em associação com a fotografia praticamente irretocável de paletas em expressões de culpa e religiosidade, desenvolvem-se de uma maneira brilhantemente exposta e transformam, indiscutivelmente, a obra televisiva em um feito incomparável e insuperável da teledramaturgia brasileira. Ouso até dizer que 'Capitu’ é a melhor coisa que a Globo fez em toda a sua existência.



A engenhosidade dessa adaptação chama a atenção por encaixar o mundo de cento e cinquenta anos atrás (estima-se que a história tenha se passado entre 1957 e 1975, embora o ano de publicação do livro seja 1899) com o mundo de dois mil e oito, estimulando o contraste entre a evolução urbana e os trajes marcados pela época que são usados pelo elenco. O uso do espaço físico ao redor é excelente em todos os ambientes. Nas tomadas externas, vê-se táxis passando enquanto Bentinho caminha corroído pelo remorso de volta para casa depois de almejar secretamente a morte da mãe como a resolução para o seu problema com os santos da igreja, e nota-se os muros marcados por vandalismos e propagandas coladas em aleatoriedade. A cidade se faz moderna quando vista do alto de um elevador panorâmico durante um diálogo entre Bentinho e Escobar, e o trem que abre a história em seu primeiro capítulo deixa de ser uma Maria-fumaça e dá lugar a um trem urbano comum da atual cidade Rio de Janeiro em meio ao horário de pico, com figurantes (ou só pessoas comuns mesmo) usando roupas do século XXI. No entanto, é nas tomadas internas que o verdadeiro charme se encontra.

A casa dos Santiago (Bentinho e sua família, formada por Dona Glória, Tio Cosme, Prima Justina, e o agregado José Dias) e a casa dos Pádua (Capitu e seus pais) tiveram seus cenários criados dentro de um imenso galpão de teatro, dando ares ainda maiores de espetáculo para a dramaturgia que se desenvolve em cena. Os instrumentos de cena que fazem alusão a época são deveras caricatos e só não caem no ridículo porque a intenção de Carvalho na encenação é bem fixada e física, de modo que o imaginário dos telespectadores permita que se licencie tratar um cavalete por corcel, uma janela por quarto, e um marco carregado por duas negrinhas (a infância de Bentinho se passa em um período anterior ao da lei Áurea, e o livro é bastante fiel ao período, usando termos como “manda lá um preto avisar” e coisas do tipo - o “politicamente correto” varia de era em era, e no caso dessa trama eles são perfeitamente cabíveis) em movimento para representar a entrada corrida de Bentinho pela porta de casa, ou a chegada triunfal de José Dias ao retornar para servir a família Santiago.


➽Frieza

“Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro”. Essa frase é, ao meu ver, a que melhor define o que Bentinho se tornou. Parece tola quando lida isoladamente, mas dentro do contexto em que está escrita no livro, representa o quão gélido e infeliz Bentinho se tornou. 



➽Final

Se o fim trágico no livro é o fato de Bentinho permanecer na dúvida por não ter quem lhe possa esclarecer os fatos, podemos dizer que o final usado na série é uma poesia enquanto o filme se acovarda. O filme deixa a dúvida no ar mesmo tendo a opção de tirá-la, pois Bento tem em suas mãos o resultado de um exame de DNA que confirmaria ou não sua hipótese de traição; mas ele decide não abrí-lo, pois isso poderia tirar o encanto que ainda lhe restava ao ver a filha, fruto do relacionamento com Ana (a Capitu do filme, só relembrando). Em uma concepção contrária, a série se encerra como o livro, mas com uma linguagem visual que diz muito sobre o próprio livro, inclusive. Bentinho se despede de seus “leitores” travestido de todos os personagens da história, com roupas umas sobre as outras, como se ele tivesse absorvido para si o caráter e a personalidade (ou pelo menos parte disso) de cada um deles. Isso diz muito sobre como a história é vista hoje em dia.

Durante décadas 'Dom Casmurro’ foi rotulado como um livro cujo relato é de um homem traído por sua amada e seu melhor amigo, mas de alguns tempos para cá tem sido questionado o fato de a história ser unilateral, contada de forma pessoal e em primeira pessoa por um indivíduo diretamente relacionado com a trama. Levantam-se interrogações sobre o caráter do narrador como indivíduo, levando a crer que se a mesma história fosse recontada sob a visão de Capitu, muito provavelmente teríamos uma percepção ampliada do caso de suspeita que Bentinho trata como verdade.

Se vocês, estimados leitores, ainda não leram 'Dom Casmurro’, peço-lhes que não o julguem como meramente um livro velho e deem a ele crédito para que mereça o tempo gasto com a leitura, que é um investimento extremamente enriquecedor. Assistam também ao filme, que revela o impacto da obra magistral de Machado de Assis, e vejam também a minissérie 'Capitu’, que é um exemplo de como se fazer uma adaptação fiel em sua alma e infiel em sua exibição. 'Capitu’ não foi gravado em uma fazenda, nem em uma casa a beira mar, e nem no mar de verdade (há uma cena importantíssima na água), mas entregou uma revisão conceitual inovadora para a mídia em que foi apresentado. Enfim, veja tudo que puder, pois cada minuto dedicado a essa obra vale a pena pela sua extrema humanidade.

Aplausos, apenas.



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