Adsense Cabeçalho

PiTacO do PapO - 'Mogli - Entre Dois Mundos' | 2018

NOTA 7.0

Vítima de si mesmo


Por Vinícius Martins @cinemarcante



Quero começar este pitaco falando sobre uma série aparentemente nada a ver com o assunto: 'Divergente’, que rendeu quatro livros (considerando ‘Quatro’) e três filmes complicados nos cinemas. A história é boa, interessante, e até certo ponto inteligente. A narrativa é contínua e flui de modo agradável, mesmo apesar de uma ou outra barra que é forçada dentro dos clichês de histórias distópicas. Tinha tudo para ser um sucesso absurdo, sem dúvidas, mas aí… eis que surge 'Jogos Vorazes’, com uma pegada similar e um enredo temático basicamente idêntico, mas com uma qualidade muito superior. Obviamente, a saga de Katniss Everdeen roubou a cena e lotou os cinemas, enquanto a jornada de Triss ficou ofuscada perante o brilhantismo do universo criado por Suzanne Collins. Eis a razão de citar essas obras: acontece exatamente o mesmo com as duas mais recentes adaptações de Mogli para o cinema.

'Mogli - Entre Dois Mundos’ inicialmente seria lançado nas telonas, mas o streaming Netflix adquiriu os direitos de exibição após uma parceria com a Warner. Percebeu-se que o filme não faria um sucesso tão estrondoso quanto o filme produzido pela Disney lançado em 2016, sob a direção de Jon Favreau, e o lançamento direto na TV pareceu mais atrativo do que o risco de se tornar um fracasso de bilheteria. Acontece que, quando se pensa em Mogli - o personagem carismático que foi criado em uma alcateia - logo se recorda a animação graciosa dos estúdios Walt Disney, recheado de músicas boas e um ritmo agradável de se assistir. A proposta aqui é diferente, mais disposta à violência, e mais fiel aos contos originais de Judyard Kipling. Mas antes de comentar o que há de positivo no filme de Andy Serkis, há uma observação lamentável a se fazer.


Peço perdão se o que eu citar agora lhes for nojento, mas é uma fala necessária para expressar minha reação ao visual dos animais. Lembro-me que vi na internet, alguns anos atrás, uma foto de uma aberração nascida de uma cabra (ou ovelha, não me lembro) que foi concebida após a prática da zoofilia. O animal, bestialmente horrendo, tinha em seu rosto feições humanas que se apresentavam numa cabeça incomum e um corpo de animal. Era um bicho com cara de gente, e essa é uma imagem difícil de esquecer. Foi exatamente aquilo que me veio na cabeça quando assisti aos efeitos de 'Mogli - Entre Dois Mundos’. Em contraponto, os efeitos do filme de Favreau (que ganharam o Oscar de Melhores Efeitos Visuais, inclusive) são totalmente palpáveis em suas texturas, com aspectos orgânicos e realistas aos animais a que se queria retratar. São figuras críveis, que convencem o público ao ponto de fazê-lo esquecer que toda aquela cenografia foi criada em um estúdio fechado. Já aqui, no filme de Serkis, os animais parecem caricaturas bizarras e tristes, que tentam se ajustar entre si. Apesar de alguns pontos se fidelizarem com as descrições originais, fica difícil encarar tais bichos e esquecer que foram feitos por meio de computação. O urso Baloo, interpretado pelo próprio Serkis, parece ter sofrido um derrame e agride os olhos dos espectadores com suas expressões nada naturais. Em um filme que exige efeitos de ponta como carro chefe, as escolhas de caracterização foram erros miseráveis.

A dublagem, por outro lado, é excepcional; o elenco traz uma carga emotiva para cada voz e, mais uma vez, se destaca Benedict Cumberbatch como Shere Khan, pelo seu bom uso do diafragma para criar vozes e timbres singulares - tal qual fez com Smaug na trilogia 'O Hobbit’. Apesar dos (d)efeitos visuais, a condução do elenco foi muito bem feita (crédito para o diretor, que entende muito bem o funcionalismo do processo da captura de movimentos e sabe como funcionam os atores justamente por ser um). Mas o grande trunfo da produção é, sem sombra de dúvidas, a presença forte que tem o ator Rohan Chand, novato que dá vida ao protagonista. Com suas expressões fortes e seus olhos grandes e castanhos cheios de vida, o jovem representa bem uma realidade mais cabível dentro da mitologia de Mogli: ele sangra, vive sujo, e é um completo selvagem deslocado em seu contato com a civilização. Há o peso constante da mortalidade, seja no medo de morrer como também no peso de conviver com quem mata. A cena mais forte do filme se dá em uma sala onde caças são expostas, e o aperto incômodo no peito é inevitável. De um modo geral, esse filme não é para crianças. O Mogli que se vê aqui tem sangue nos olhos e nas mãos, portanto deve-se ter ciência disso antes de querer assistir ao filme com seu filho pequeno.

É provável que o sucesso de 'Mogli - Entre Dois Mundos’ (cujo subtítulo é exatamente o mesmo do excelente 'John Carter’, de 2012) fique na sombra do filme laçado dois anos antes, e isso o torna uma vítima do período em que foi lançado. Talvez, se tivesse sido feito antes, teria alcançado a inovação que propunha; mas isso nunca saberemos. Só o que sabemos é que, apesar de ter suas qualidades, é um filme inferior ao de 2016 - e comparações, por mais chatas que sejam, às vezes acabam sendo inevitáveis.

Vale Ver !


Nenhum comentário