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Oscar : Cinema Vs Verdade

Por Vinícius Martins @cinemarcante


Há quem diga que a verdade é relativa, e há quem afirme que existe sim uma única verdade. Algumas semanas atrás, no grupo do Papo de Cinemateca, debatemos esses argumentos e notamos nossos pensamentos diferentes acerca do assunto. Sou da crença na verdade absoluta, mas não desprezo o relativismo; acho que o mundo só está habituado a tratar como verdade aquilo que é, na verdade, história. Se duas pessoas brigam e a pessoa A dá um tiro na perna da pessoa B, teremos duas histórias diferentes, com duas razões diferentes em dois argumentos diferentes sobre uma mesma discussão. Isso é relativo, já que são dois pontos de vista acerca de um debate acalorado com desfecho violento, e encontrar a verdade aqui é uma missão impossível já que são visões distintas. No entanto, é uma verdade incontestável o fato de que a pessoa A atirou na pessoa B, e nisso não há relatividade. Histórias são relativas, fatos não.


O exemplo acima foi apenas um exercício para comentarmos hoje a vitória de 'Green Book - O Guia' na edição do Oscar ocorrida em 24 de fevereiro de 2019. O principal prêmio do cinema mundial provocou murmúrios por parte de muitos insatisfeitos com o Oscar dado a um filme que foi, recentemente, rodeado por uma polêmica que contesta a veracidade do seu roteiro. Em um breve resumo da questão, a família do já falecido Don Shirley (pianista negro a quem Mahershala Ali deu vida e conquistou seu segundo Oscar de Melhor Ator Coadjuvante) afirmou que o filme é uma grande farsa, que Shirley e Tony Lip nunca foram amigos como retratado em cena e que foram desrespeitados ao não serem consultados antes de tal filme ser produzido. Após a cerimônia do Oscar, o produtor e roteirista Nick Vallelonga, que é filho do motorista real a quem o filme retrata, deu uma declaração sobre o assunto:

“A situação com a família de Don Shirley é responsabilidade minha, mas o próprio Don Shirley me falou para não conversar com ninguém. Ele me contou a história que queria contar, ele protegia sua vida privada e todas as coisas sobre ele. Coisas maravilhosas. Ele me falou que se fosse contar a história, deveria contar do ponto de vista do meu pai. Não devia falar com mais ninguém, era assim que ele queria fazer. Eu mantive minha palavra com o homem, eu queria ter falado com a família de Don Shirley. Eu nem sabia que eles realmente existiam até depois de fazermos o filme”
(Fonte : Clique aqui)

Nick Vallelonga no Oscar
O grande diretor Spike Lee chegou, inclusive, a dar as costas ao discurso dos produtores vencedores, em um ato de protesto por aquilo que ele mostrou considerar um desrespeito. Muitas pessoas questionaram se a entrega do prêmio mais visado do cinema mundial não teria sido injusto, coroando um filme de caráter duvidoso e questionável. E é aí, meus queridos, que entramos no assunto que é a razão deste artigo. O cinema tem alguma obrigação com a verdade?

Podemos dizer que já vimos de tudo um pouco: Hitler ser assassinado em um cinema por uma milícia americana, carros robôs alienígenas gigantes defendendo a Terra, naves espaciais que produzem som no vácuo, inteligências artificiais com capacidade de destruir a humanidade, dinossauros recriados em laboratório com DNA de rã, e por aí vai. Exemplos de mentiras históricas, fantasiosas, físicas, e científicas, que riem da cara da realidade e do realismo como se a verdade não fosse nada - e ainda bem que são assim! Liberdades criativas são úteis e enriquecem a cultura, uma vez que o cinema é promotor de porquês das mais diversas espécies. Agora vamos imaginar, só por um instante, que 'Bastardos Inglórios', 'Transformers', 'Star Wars', 'O Exterminador do Futuro' e 'Jurassic Park' fossem obras feitas somente sobre o pedestal da verdade crua. O resultado é: simplesmente não existiriam. Alguns filmes dependem do desapego com a verdade para funcionarem.

Há, é claro, filmes que se propõem a retratar fidedignamente cada passo dado pela figura a quem faz alguma reverência. 'Lincoln', de Steven Spielberg, é um desses casos. Filmes assim são obrigatoriamente feitos em cima da história real, ocorrida em algum ponto do passado, e com uma trama totalmente pé no chão que busca ser o mais exata possível. Todavia, mesmo 'Lincoln' cometeu seus erros históricos, que se destacam até hoje na muralha de perfeccionismo histórico que divide a produção das demais. Os filmes que se desapegam de retratar tudo fielmente são mais audaciosos e mais bem recebidos pelo público por serem mais palatáveis;os próprios demais indicados na categoria de Melhor Filme do Oscar 2019 são exemplos excelentes dessa artimanha: 'Vice', 'A Favorita', 'Infiltrado na Klan', 'Bohemian Rhapsody' e até o intimista 'Roma' são histórias reais contadas sob uma perspectiva semi-real, seja por abordarem seus personagens de forma caricata ou pela inevitável parcialidade do envolvimento pessoal com a trama, dando a disposição para se assumir lados.



Às vezes a verdade absoluta pode ser mais inacreditável do que a ficção, acreditem. Desse modo, é normal que o cinema crie rotas alternativas para fazer seus filmes serem mais “normais” e humanos quando se conta uma história real. No caso de 'Green Book - O Guia', é bem especificado na abertura que o filme é inspirado em uma amizade real. Inspirado. Parece que as pessoas não lembram ou não sabem o que essa palavra significa, ainda mais dentro do cinema. Isso é o passe livre, o cartão verde para romantizar a coisa toda como se bem entender, descompromissando o filme com a carga de ser fiel em todos os aspectos. É diferente de apresentar a obra com a legenda “uma história real”, que significa que aquilo é uma representação absoluta do que realmente aconteceu e, portanto, uma verdade.

'Green Book - O Guia' é belissimamente inspirado, tanto na jornada real de Tony Vallelonga e Don Shirley quanto na concepção de si mesmo, com sua capacidade especial de “mudar o coração das pessoas”, em uma paráfrase do próprio roteiro. No cinema não há a necessidade da verdade; precisa-se apenas contar uma boa história. Talvez a verdade absoluta seja um fator que venha a estragar o cinema, com sua apuração precisa de fatos do mundo real que se torna, cada vez mais, absurdo e desalmado. Independente do que disse a família de Shirley, a história do filme foi contada da maneira que Don gostaria que fosse retratada, e não há honra maior ao legado dele do que a apresentação de sua viagem rumo à própria evolução como indivíduo. O homem solitário que, finalmente, mudou o mundo.



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