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PiTacO do PapO - 'Lembro Mais dos Corvos’ | 2019

NOTA 7.5

A sensibilidade pelo íntimo

Por Vinícius Martins @cinemarcante


Documentários tem, de um modo geral, uma predisposição a serem tendenciosos. Em tempos como o que vivemos, com um cenário político conturbado e polêmico, estar diante de uma obra documental que flui com naturalidade e leveza e que ao mesmo tempo não assuma um lado, se torna um verdadeiro achado. É exatamente o caso de ‘Lembro Mais dos Corvos’, do diretor Gustavo Vinagre, que está em cinemas selecionados pelo país.

A atmosfera criada é conduzida em uma direção contrária ao que temos como convencionalmente cinematográfico, e isso é surpreendentemente bom. O que se vê em tela é uma conversa entre amigos que se encontram nos extremos opostos da câmera, dialogando com uma certa timidez inicialmente, mas sem perder a natureza da liberdade que possuem entre si. Essa intimidade acaba se apresentando com o passar dos minutos, através do explicitar de confissões das mais diversas modalidades: os abusos sofridos na infância, os furtos de videocassetes de uma locadora, os fetiches em indivíduos aleatórios e coisas específicas, os filmes  com a mãe, a crença da mãe de que a jornada da vida da atriz se resumia em reproduzir cenas icônicas do cinema (principalmente as de sofrimento), e a tentativa de autodefinição por parte da entrevistada, com todos os seus tímidos complexos e cicatrizes da vida. Desse modo, é fácil que o espectador se sinta parte integrante da cena e seja transportado para o ambiente onde o filme se passa, e que com isso tenha algumas liberdades sobre a produção e sobre como ela o afeta individualmente.


Cada espectador é conduzido na jornada de compreensão da vida de Julia Katharine, a mulher trans-tornada (segundo sua autodefinição) que interage com a equipe da produção a todo tempo, em especial com o diretor (que é seu amigo íntimo de longa data), servindo chá e até sugerindo uma música para o fundo, a ser encaixada na edição. Com isso, o público é levado a opinar mentalmente sobre os erros e acertos da atriz, julgando-a e, consequentemente, julgando a si mesmo enquanto descobre a humanidade por trás dos vícios e sonhos da figura singular que se dispõe em quadros que enchem a tela. Julia Katharine não se reconhece nas fotos de infância; se vê, sabe que é ela e até se lembra de quando foram tiradas, mas não vê a criança cuja imagem foi capturada como sendo ela. O garoto que se tornou mulher se abre como um livro nas quase uma hora e vinte que o documentário tem em sua duração, e o resultado da interação é um dos mais célebres e intimistas registros artísticos do cinema nacional.

O diretor filma a distância, com o zoom focado por vários períodos no rosto da atriz e em planos extensos, mostrando o quão longe o público está da realidade vivida pela atriz transsexual e provocando, simultaneamente, uma aproximação pela humanidade que transborda dela, revelando sua simplicidade humilde sem permitir que ela pareça uma caricatura de si mesma. Julia é gente como a gente, que rala pela arte que produz, que paga peitinho sem perceber, que se assume como é e se compreende mesmo sem se entender consigo mesma. É uma pessoa como qualquer outra, e é isso que a torna tão especial aos olhos de Vinagre ao ponto de ver nela potencial para sustentar uma obra documental praticamente sozinha. Uma jogada tão arriscada quanto acertada por parte do diretor, que não beatifica nem demoniza a pessoa; só a expõe como realmente é.

Obviamente, Julia Katharine é mais do que se mostra no filme; porém, o pouco que se vê é suficiente para que o mundo a conheça e, com isso, a reconheça como a artista que é. Seja reclamando do tempo ou apresentando o kimono alugado para a filmagem, a atriz consegue, com sua presença cativante, deixar o recado que queria dar. Qual recado é esse, no entanto, vai de acordo com cada um após a sessão.

Vale Ver !


➤Confira o pitaco de 'Tea for Two', curta metragem dirigido por Julia Katharine, a protagonista de 'Lembro Mais dos Corvos', e que teve exibição conjunta nos cinemas.




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