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PiTacO do PapO - 'Coringa' | 2019

NOTA 10

O notável cidadão invisível


Por Vinícius Martins @cinemarcante


Causa e efeito. Ação e reação. O catastrófico efeito dominó da aceitação do caos interior, exteriorizado através da massiva sociedade que anseia ser reconhecida a todo custo.

Uma das memórias que mais gosto de ter, em toda a minha história com o cinema, é a da sensação que me veio após a sessão de 'Planeta dos Macacos: O Confronto', lançado cinco anos atrás. Em resumo, o filme foi um baque forte no peito, quase como um estado de choque, até que então me dei conta de que durante toda a duração do longa eu estava torcendo justamente contra aquilo que era inevitável - e pior: contra um inevitável que eu já sabia que iria acontecer de antemão. Quem conhece a mitologia sabe muito bem que, para chegar ao ponto que dá sentido ao título da obra (o tal planeta dominado por macacos), as coisas precisam desandar bastante até não terem mais conserto. E foi exatamente essa mesma sensação que me acometeu enquanto assisti 'Coringa', longa metragem de Todd Phillips que propõe uma releitura do vilão clássico do Batman enquanto busca apresentar uma origem que dê sentido aos maus atos do palhaço perturbado. Novamente, me vi estarrecido por estar torcendo por um futuro que eu sei que não vai acontecer. A obra é uma sinfonia de injustiças que leva à loucura. As coisas no filme pioram e pioram, e precisam piorar para que o mito monstruosamente elegante do Coringa se faça surgir como o conhecemos.


A ultra violência física que se apresenta explícita e implacável é o gatilho para que seja dada a revanche contra as violências (psicológicas, principalmente) sofridas por Arthur (intensamente interpretado por Joaquin Phoenix). Uma iniciativa ousada e inédita nas telonas é a de explorar a psique doentia do icônico antagonista do Batman de forma mais "técnica" e, de certo modo, justificar suas ações na mescla balanceada de coerência e insanidade perante os infortúnios que o cercam. O Coringa toma para si o protagonismo agora em um filme próprio, que não se acanha na hora de mostrar a total falta de pudor do homem atormentado em sua tão sonhada jornada de ascensão ao estrelato.  O grande contraponto que se ergue aqui, com a perspectiva narrada no filme, é que ao justificar as ações do personagem justificam-se também, por consequência, a vilania e os atos de atrocidade cotidianamente vistos ao redor do mundo, onde pessoas frustradas com a própria vida ceifam as vidas de dúzias de outras pessoas. Como não lembrar do caso de Aurora, que em 2012 teve o cinema invadido por um atirador na sessão de pré-estreia de 'Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge'? Como não temer que o filme incentive indivíduos com linhas de pensamento semelhantes às do Coringa a iniciar uma onda de ataques de pseudo-justiça? A linha tênue que separa ficção de realidade vem sendo cada vez mais apagada e, em tempos onde se discute a violência tão vastamente, uma obra como 'Coringa' tende a colocar ainda mais lenha na fogueira.

Todavia, se eu puder destacar duas coisas além da atuação de Phoenix e do tato áspero de Phillips no cargo de direção, são elas a ambientação e a trilha sonora. Estabelece-se toda uma simbologia dentro de Gotham, com uma crise de ratos gigantes que saem das sarjetas e incomodam a elite da cidade - que é o equivalente aos cidadãos pobres, que iniciam uma revolução na esperança de finalmente serem notados. A Gotham de Phillips é suja, imunda, e um tanto quanto asquerosa. Há lixo por todos os lados, pichações em todas as ruas, e uma insatisfação coletiva que segue em crescente enquanto a "ralé" começa a colocar a cara a tapa. É fácil ao público a imersão na década de setenta, e é mais fácil ainda perceber como a desigualdade precisa somente de um gatilho para se tornar uma guerra civil.

Quanto ao fator musical, há um contraste interessante entre esse filme e 'Batman: O Cavaleiro das Trevas', que Christopher Nolan lançou em 2008 e que teve Heath Ledger na pele do Coringa: enquanto lá as cordas de Hans Zimmer apareciam em um destoar proposital, estabelecendo um caótico audível para gerar desconforto a cada aparição do vilão, aqui as cordas da islandesa Hildur Guðnadóttir acompanham a decadência de Arthur Fleck até o fundo do poço, para então evoluírem com ele em sua odisseia para fora do anonimato, quando se assume como Coringa e adota a própria loucura como identidade. A composição de Hildur vai da melancolia para a euforia com uma sutileza inteligente, e a naturalidade como isso acontece é ao mesmo tempo assustadora e comovente.

É a primeira vez que um filme de personagem de histórias em quadrinhos chega aos cinemas de forma tão humana e desprovida de alegorias megalomaníacas e explosões, sem precisar apelar para um plano de dominação mundial ou invasões alienígenas; essa, meus queridos, é a primeira vez que se mostra que das HQs também pode ser feito cinema arte. E como boa arte, deve ser contemplado e comentado por ainda muito mais tempo, consolidando-se como uma referência a ser seguida e um marco a ser superado pela concorrência. A trama é traiçoeira, mas não há trapaças; ela mente para se estabelecer como fruto de uma mente confusa e em conflito consigo mesma a todo instante, e o resultado final é deveras magnífico. Parabéns aos envolvidos... e que venha o Oscar!


Super Vale Ver !


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