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PiTacO do PapO - 'O Irlandês' | 2019

NOTA 10

Um lembrete do cinema arte

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

Para dinamizar a compreensão acerca da escrita a seguir, optei por classificar minhas opiniões em tópicos distintos, colocando, de certo modo, quatro críticas em uma única.

A POLÊMICA

Dentro do atual dilema existencial do cinema em si mesmo, onde debate-se a finalidade dos filmes e dos veículos que se usam para comercializá-los, surge um filme que é, inquestionavelmente, o cinema em sua essência mais crua - porém, ironicamente, fora do cinema. O diretor Martin Scorsese, que recentemente levantou poeira ao questionar justamente a tal definição de cinema, lança agora uma belíssima obra cinematográfica com nível de absurda excelência, mas que cuja veiculação principal não se dá na tela grande de uma sala escura, e nem tampouco na interação emocional conjunta entre desconhecidos. Basicamente, um filme que é cinema sem ser de fato.

'O Irlandês' deveria ser, antes de qualquer outra coisa, uma experiência cinematográfica. Trata-se de um filme a ser prestigiado na telona, com caixas de som em volumes altos, sem interrupções terceiras ou intervalos pausados - intervalos que, inclusive, se fazem desnecessários para quem sabe contemplar um bom filme e já tem o hábito de se preparar para uma jornada dessas. Quem assistiu a 'Titanic' ou 'O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei' sem pausas conseguirá, muito provavelmente, encarar 'O Irlandês' com facilidade. O ritmo do filme é tão envolvente que dá a impressão de que as três horas e meia de sua duração quase não podem ser sentidas, passando de uma forma surpreendentemente rápida. Este é um filme que merece todo o glamour que só uma sala de cinema consegue dar a um filme; e eu, apesar de imensamente feliz por tê-lo assistido no cinema, lamento sua exibição limitada e o fato de que a imensa maioria das pessoas terá acesso a ele somente via streaming. O cinema arte, antes de qualquer outra coisa, precisa do cinema para ser cinema.


O CONTEXTO

Todavia, não se deixe abater e não deixe de ver o longa (e bota longa nisso!) caso não consiga assisti-lo no cinema. O filme por si só merece ser apreciado e, inclusive, estudado por quem pensa em cursar o ramo audiovisual. Não existe palavra que melhor defina a brilhante ambientação de 'O Irlandês' do que sublime. Todo o trabalho de recriar as décadas que o filme revisita é merecedor de destaque e, sem dúvida nenhuma, confirma o tato de Scorsese para filmes de facções cujas tramas se passam cinquenta anos atrás. E apesar de se tratar de um enredo de gangues, a produção pode muito bem ser confundida com um drama político - não desses biográficos, mas sim dos bastidores podres da nação mais poderosa do mundo, o que é muito mais interessante de se assistir por quase quatro horas seguidas.

Scorsese reconta aqui, ao seu modo, a não tão bela história americana com seus problemas de uma pantomima caricata. Seja em armas descartadas em rios ou em figurões que se elegem por meio do apoio sindical, a sujeira está em todo canto que se olhe - porém, ela é tentadoramente bela e atrativa. A obsessão pelo poder (ou pela aparência dele) rende críticas atuais e úteis para diversos setores, partidários ou não. Há um discurso interessantíssimo, inclusive, de Jimmy Hoffa, interpretado por Al Pacino, que remete ao discurso de um certo sindicalista brasileiro sobre ser "o mais honesto da nação". E enquanto Scorsese expõe a beleza das falácias nos palanques, explicita também a podridão da corrupção do poder e a audácia descarada de alguns indivíduos populares para se manter nele, sejam figuras públicas ou "fantasmas" atuantes na surdina. No meio disso tudo está Frank Sheeran (que pode muito bem ser parente do Ed Sheeran, conforme especula-se - é sério, confira aqui), interpretado por Robert De Niro, que fica encarregado de fazer o trabalho sujo. Sheeran é o narrador da história, e é através do relato de suas reminiscências que se estabelece a ligação do caos verídico com a arte de Scorsese.

A ASSINATURA

O bom e velho Martin Scorsese está de volta com o seu melhor estilo 'Os Bons Companheiros', mas engana-se quem pensa que encontrará mais do mesmo em seu novo projeto. O diretor se reinventa com truques sutis de um humor técnico, ácido e apurado - acreditem, 'O Irlandês' está recheado de elementos cômicos, talvez mais até do que 'O Lobo de Wall Street', lançado no Brasil em 2014. A cena do diálogo entre Frank e Sussurro (não aquele, o outro) é uma evidência bruta disso. A trilha sonora pontualmente dá lugar às interferências argumentativas dos pensamentos de Frank, com um timing perfeito para explicar o contexto e ainda tirar sarro dos termos usados na fala de Sussurro. No entanto, obviamente, a graça não é o carro chefe do filme.

A violência impactante está presente, assim como o choque surpreendente que o diretor consegue provocar pelo súbito de suas reviravoltas. Também está presente a irreverência com que ele lida com assuntos sérios, provocando o que muitos podem considerar transgressões, mas que acabam sendo aceitáveis pela maneira como são conduzidas. Um dos maiores conflitos do filme é o relacionamento entre Frank e sua filha - não leia "conflitos" no sentido negativo da palavra. Aqui o diretor usualmente contrasta a inocência infantil com a violência famigerada e impulsiva dos adultos ao redor, e todo o elenco parece entender plenamente a alma dos personagens a quem dão vida. Dilemas humanos sempre foram bem explorados no cinema de Scorsese, e saber dirigir elencos é uma das suas melhores qualidades. É como se houvesse um "gênero Scorsese" nas entrelinhas, como se o diretor tivesse inventado uma tendência única de contar histórias, e essa singularidade deu luz a filhos como Todd Phillips e seu 'Coringa', que ainda lotam as salas de cinema pelo mundo inteiro. 


O LEGADO

Já que 'O Irlandês' remete aos trabalhos do diretor em sua era de ouro, não há exageros em afirmar que a produção seja uma verdadeira aula. É fácil encontrar diretores que se inspirem em Scorsese e em sua metodologia para fazer a abordagem às suas histórias, mas é difícil encontrar alguém que se sobreponha ao mestre. Scorsese, no fim das contas, é Scorsese; e como ele está em constante evolução, ele ensina também como fazer bom uso da tecnologia.

'O Irlandês' é excelente até em rejuvenescer seus atores, algo que alguns blockbusters recentes (cof cof 'Projeto Gemini' cof cof) não souberam fazer de maneira orgânica, mesmo com toda a tecnologia criada com a finalidade para tal. Scorsese já mostrou que sabe se sair muito bem com efeitos visuais; 'A Invenção de Hugo Cabret' venceu o Oscar nessa categoria, merecidamente.

E assim sendo, 'O Irlandês' é um marco memorável de junção entre o cinema clássico e os milagres digitais. Scorsese é um dos poucos diretores que usa a tecnologia como elemento de arte de fato, dando utilidade e equilíbrio ao seu estilo narrativo.

Se o filme é cinema ou deixa de ser somente por ter sido feito para exibição na televisão via Netflix, é assunto para outra discussão. Por enquanto, vamos destacar que Scorsese é cinema, e seu toque de Midas é uma raridade nos dias de hoje. Estamos diante de uma obra de arte, que não poderia ter sido feita por outro artista senão esse.


Super Vale Ver !


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