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A trágica comicidade de 'Resgate', novo filme Netflix | 2020

NOTA 9.5

Entre atropelamentos, planos-sequência e Goonies do inferno

Por Vinícius Martins @cinemarcante


"Não é caindo no rio que você se afoga, mas ficando submerso nele". É curioso quando um filme de ação se propõe a ser filosófico, principalmente se ele tratar a hostilidade de guerras civis nas periferias do mundo - quando a moralidade impõe dilemas complexos e a humanidade parece estar habituada com a indiferença. As críticas de 'Resgate', sejam elas sociais ou de caráter moralista, são devidamente expressas com a inocência que se perde quando uma criança empunha uma arma, quando uma criança se dispõe a matar, e quando uma criança é coagida a uma obediência cega para conseguir viver. A miséria causada pela ambição pode fazer mais vítimas do que afogamento em rios, e é sobre isso que o filme trata em suas camadas mais íntimas.


A base da premissa de 'Resgate' é bem simples: um garoto, filho de um magnata do crime que está cumprindo pena, é sequestrado pela milícia rival; o tutor do garoto contrata uma equipe de mercenários combatentes para efetuar o resgate, mas o plano dá errado quando a equipe é traída em uma emboscada denunciada pelo próprio tutor (que queria os créditos do resgate somente para si) e inicia-se uma perseguição de vida ou morte pelas cabeças do último combatente vivo, interpretado por Chris Hemsworth, e do menino resgatado que está sob sua proteção. No entanto, não se deixe enganar pelas aparências da vilania; cada personagem tem sua motivação bem fixada, e suas ações se fazem justificar tendo em vista a realidade de submissão de cada um - seja a um indivíduo, à pobreza ou ao sistema corrupto que rege algumas cidades da Índia. Os poderosos são os verdadeiros vilões, mas o filme não é sobre eles; é sobre a ralé, os reféns, as vítimas do regime de políticas frouxas e do orgulho de homens exploradores.

'Resgate' é um filme sério, mas que se permite rir de vez em quando. Todavia, há uma tragédia enorme por trás dos alívios cômicos que aparecem vez ou outra. Nota-se que a violência faz parte do cotidiano das pessoas quando uma moto passa no meio de uma briga de facas sem que o seu condutor sequer se abale - ou quando corpos despencam de edifícios e as pessoas passam sobre eles como se fossem meramente barreiras ocasionais. A trama do material original (a Graphic Novel 'Cuidad', criada por Ande Parks e escrita em parceria com Joe e Anthony Russo, co-diretores de 'Vingadores: Ultimato') se passa na América do Sul, mas a escolha de mudar o cenário para as paisagens contrastantes da Índia e de Bangladesh (onde beleza e pobreza se fazem quase como uma coisa só, de tão entrelaçadas nos ambientes) para retratar quão miserável o homem pode ser - tanto externa como internamente - foi bem assertiva.

O filme, escrito e produzido por Joe Russo, é a nova aposta de ação da Netflix com a estreia do nome de Sam Hargrave no cargo de direção. Hargrave é um dublê bastante conceituado, o que lhe permitiu criar sequências visuais deslumbrantes de ação e inclusive planos-sequência profundos e imersivos, que (apesar de eu ter notado os pontos de corte) encantam pela técnica ousada e pelos efeitos práticos. Chris Hemsworth, que protagoniza o filme na pele de Tyler Rake, também é produtor da obra e tem mostrado um talento e tanto para o drama. A cena mais impactante do filme é justamente a de calmaria, onde as reminiscências de seu personagem vêm à tona e ele transparece sua humanidade.

Apesar de fisicamente forte, Tyler Rake é um homem emocionalmente destruído. O mistério acerca do seu passado e a insistência em salvar o garoto Ovi (Rudraksha Jaiswal) são o elo empático entre o público e o personagem que, apesar de lutar pela sobrevivência, se nega a matar crianças - mesmo que as mesmas lhe apontem armas e puxem o gatilho contra ele. Há um comentário feito pelo próprio personagem que destaca a diferença (ou a semelhança) entre as crianças milicianas e os Goonies (o grupo de crianças que buscava um tesouro, um filme clássico de Sessão da Tarde). Que recompensa aguardaria aqueles garotos caso eles conseguissem executar as ordens dadas a eles? Que futuro eles teriam neste caminho que a vida os colocou? A ausência de escolha e a relação entre estas e as consequências das mesmas é algo que o filme começa a explorar e que, apesar de abandonar por não ser o foco da obra, deixa uma grande indagação: de quem é a culpa?

O afogamento vem quando se fica submerso muito tempo, quando o ar falta aos pulmões e se precisa inspirar desesperadamente. Há duas linhas seguinte esse pressuposto no filme, uma literal e outra figurativa. Ambas são devastadoras. Quando se está tempo demais na água, perde-se a distinção de onde se está, se é abaixo ou acima da superfície. 'Resgate' é um filme excelente por definição justamente devido ao tratamento que dá ao sensível, ao humano e ao empático. Há quem fique submerso por opção própria, e há quem esteja submerso por falta de oportunidades de emergir. Mas parece não importar essa diferença entre os grupos, pois onde pessoas são atropeladas e se levantam como se aquilo fosse algo indolor (e onde pessoas assistem coisas assim sem prestar socorro ou se importarem), a sensibilidade já se ausentou e deixou danos quase impossíveis de reparar. Esse tipo de gente é que precisa ser resgatada, e hoje mais do que nunca.


Super Vale Ver !


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