Especial : Livro que deveria virar filme - Deus é meu Camarada | #1
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Abrindo o novo especial do Papo de Cinemateca, trago uma literatura que é recomendação pessoal minha já há muitos anos. O livro francês ‘Deus é meu Camarada’, do autor também francês Cyril Massarotto, é um verdadeiro achado dentre tantas obras especulativas justamente porque se atém aos elementos mais humanos da relação entre o homem e o divino. A obra - genial, devo destacar - é escrita com uma sensibilidade rústica cheia de comicidade e referências à cultura pop (e com alguns acenos ao cinema também, inclusive), mas equilibrada com a dosagem certa para não deixar de lado os aspectos mais importantes da vida e o drama que cerca as tragédias pessoais mais dolorosas.
Um dos traços mais curiosos do livro, que acredito também ser o fator que gera uma empatia mais profunda com a jornada proposta, é a noção de a história ser narrada em primeira pessoa e de o protagonista não ter um nome próprio. Poderia ser qualquer nome, o meu ou até mesmo o seu, mas isso não é relevante para a trama - na verdade, o fato de ele não ter seu nome revelado contribui bastante para uma imersão maior de quem lê. Aos olhos do leitor, nesse caso, não fica estabelecido que “estou lendo as memórias do Percy Jackson ou da Katniss Everdeen”, mas sim estou, de certo modo, encarando as minhas próprias. E é isso o que o livro é, em uma visão mais aberta: uma incrível viagem introspectiva de aceitação, autoconhecimento, reflexão e autocontemplação.
Logo na primeira página o público é jogado, assim como o homem a quem a história acompanha (vamos chamá-lo de Cara sem Nome, já que todo mundo conhece o Homem sem Nome como um personagem do Clint Eastwood), em um cenário totalmente inusitado: Há um clarão e, de repente, BUM!, ele está no céu, diante da presença de uma versão estereotipada de Deus. Os estereótipos, é claro, se quebram com a frequência desses encontros, e a informalidade ganha cada vez mais espaço, trazendo consigo uma amizade inusitada entre um homem comum, sem nada de aparentemente tão especial ao ponto de fazê-lo se destacar na multidão de bilhões de outras pessoas, e Deus, que é… bem, que é Deus.
Ao contrário do que pode se imaginar, este livro não tem nenhum vínculo religioso e não é sustentado por nenhuma denominação específica. Na verdade, faltam-lhe até alguns fundamentos bíblicos - mas a essência de Deus está presente, na versão mais brincalhona, fanfarrona e zoeira possível. Deus é um cara alegre, divertido, em quem se pode confiar. Deus é um amigo, e a relação entre Ele e o Cara Sem Nome é uma das alegorias mais belas que já tive o prazer de ler. Deus, por ser onisciente, sabe de tudo sobre a vida do Cara sem Nome - e isso rende ótimos momentos sem papas na língua, alguns constrangedores, outros indutores à aceitação, mas todos igualmente relevantes na construção da amizade de ambos. Por não ter segredos entre o Cara sem Nome e Deus, o livro abre espaço para dialogar com questões como o uso recreativo de drogas, complexos masculinos sobre o tamanho peniano, masturbação, fobias causadas por traumas, expectativas frustradas, melancolia e, por último mas não menos importante, gratidão. Muita gratidão. O final de ‘Deus é meu Camarada’ é extremamente eficiente em restabelecer a fé na humanidade.
POR QUE MERECE VIRAR FILME?
O enredo, por si só, já bastaria para embalar uma excelente produção. As várias referências que o livro faz brincam com a perspectiva do público de uma maneira plenamente cinematográfica, e destaco aqui a cena da versão reimaginada de ‘O Exorcista’, que seria maravilhosa de ver na telona. A ambientação do livro é prática, e foi um exercício fácil imaginar cada cena apresentada como se fosse um filme - desde a sex shop onde o Cara sem Nome trabalha até a casa onde Alice, a mulher de sua vida, viveu uma tragédia na infância.
Mas o que mais me faz querer ver uma adaptação de ‘Deus é meu Camarada’ chegar aos cinemas é um monólogo que Deus faz sobre a maneira como Ele sente a humanidade. Não vou entrar em muitos detalhes para evitar todo e qualquer spoiler, mas vou contextualizar para que você tenha uma noção do quão intensa e potente é a cena em questão: Deus e o Cara sem Nome estão em uma discussão acalorada, e o homem acusa Deus de não saber o que é o sofrimento. Deus, nesse momento, começa uma explanação intensa que é ao mesmo tempo terrível e bela, o que resulta em uma das falas mais dolorosas que já li. Lembro de ter precisado, inclusive, respirar por alguns longos minutos após a cena em questão, de tão impactante que ela me foi. É difícil não lacrimejar com o quão aterradora a fala é, e o compilado de emoções contrastantes que senti simultaneamente com essa leitura é algo que merece ser experimentado no cinema. Claro, há uma diferença nítida entre as mídias escrita e audiovisual, mas o modo como a cena se desenrola é perfeito para uma transposição às telas.
MINHA EXPERIÊNCIA COM O LIVRO
Me fez chorar (de pavor e de emoção), e arrancou lágrimas também da maioria das pessoas a quem emprestei meu exemplar (ou recomendei a leitura) e que depois conversei a respeito. Apesar de discordar de algumas coisas no que consiste crença e Bíblia, gosto de ressaltar que o relacionamento que o Cara sem Nome e Deus possuem no livro é exatamente o tipo de relacionamento que eu sempre imaginei ser o ideal para se ter com Ele. Deus é um amigo, e não há amizade sem intimidade e confiança. O livro de Massarotto conseguiu transmitir esse sentimento em si de um jeito peculiar, mas eficaz e encantador.
Quero concluir recomendando a todos a leitura dessa delicinha literária que este livro é, especialmente a você, independente de qual seja a sua crença. Depois de ler ‘Deus é meu Camarada’, quem acredita em Deus irá deixar de lado algumas velhas formalidades e passará a vê-lO como o amigão que ele realmente é. E se você é ateu, não tem problema: a leitura é um excelente entretenimento e certamente te levará a refletir sobre muitos rumos que a vida toma, às vezes de forma inesperada, enquanto tentamos entender nosso propósito na breve passagem que fazemos por aqui. Em todo caso, muita graça e emoção esperam por você na leitura desse clássico contemporâneo (o livro é de 2008 e chegou ao Brasil em 2010) encantador e humanizado, enquanto esperamos que algum estúdio consiga convertê-lo aos cinemas.
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