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A honra auto-imputada de 'Mulan' | 2020

NOTA .8.0

A modernidade de um ícone clássico

Por Vinícius Martins @cinemarcante

Mulan não é uma princesa. Nunca foi. Princesas, segundo os clássicos da Disney, precisam de um príncipe que lhes salve - e esse não é o caso de Mulan. Mulan é uma guerreira, e a animação dirigida por Tony Bancroft e Barry Cook lançada em 1998 retrata com louvores ao mundo ocidental a jornada da plebeia chinesa que salvou um império das garras malignas de um terrível vilão. Não há consentimento histórico se a guerreira Mulan de fato existiu ou não, mas mesmo sendo uma figura aparentemente ficcional em um filme com apelo à fantasia e voltado para o público infantil, a personagem trouxe questões pertinentes ao debate sobre o ser feminino através dos séculos, além de expôr ideologias culturais que limitam a existência das mulheres à primitiva condição de subserviência. No entanto, o brilhante filme de mais de vinte anos atrás é fruto de seu tempo e reflexo de uma geração de transição. O mundo passou por atualizações e, por consequência, as definições de feminilidade também. 


'Mulan' ganhou um tom mais sério - e também mais dramático - em sua nova roupagem cinematográfica. A releitura em live action de 2020, lançada direto na plataforma de streaming Disney+ devido a pandemia COVID-19, revira as escolhas da protagonista e traça novos rumos para ressignificar seu ímpeto guerrilheiro. Enquanto no filme anterior ela teve que aprender tudo na prática e de maneira improvisada, nessa nova versão dirigida por Niki Caro ela já nasce com um dom apurado que a faz ter capacidades superiores aos demais ao seu redor - dom esse que é chamado de Chi. Pode ser que, para alguns, a presença desse fator sobrenatural venha a limar os méritos de Mulan enquanto mulher em sua jornada de superação, mas deve-se destacar que a proposta aqui é outra, e a superação é mais ideológica que física. A cena que apresenta as capacidades do Chi, já na abertura deste novo 'Mulan', mais parece ter saído de um dos clássicos excêntricos de Bollywood do que do balé aéreo surreal de 'O Tigre e o Dragão' (2000); mas essa impressão é dissipada na cena de batalha seguinte, quando o vilão Bori Khan sobe uma parede em uma corrida de passadas largas e ritmadas durante uma sequência de invasão. O Chi é poderoso, e isso fica bem estabelecido desde o início, para o bem e para o mal.

A jornada de Mulan se dá quando ela escolhe ir, na calada da noite, ocupar o lugar do pai na batalha contra Bori Khan, que é um inimigo declarado da China e pretende derrubar o império em vingança à morte do pai. Para impedir a consumação de seus planos malignos, o imperador convocou um homem de cada família para o combate contra Khan e o pai idoso de Mulan teve que se apresentar para outra guerra. Ao decidir tomar o lugar do seu patriarca para salvá-lo, Mulan furta a armadura e a espada do pai para se travestir como homem e se passar como filho. Ela se empenha para não trazer desonra para a família e fazer jus ao legado que o pai deixou na guerra anterior. Todavia, a fórmula do filme novo mudou significativamente em comparação com a animação, o que fez mudar também a percepção sobre a mensagem final. Se o discurso da animação era o do auto-sacrifício para não escandalizar os companheiros de pelotão (e não desonrar a família, os costumes e o país), agora se torna o da auto aceitação e passa a explorar uma vertente identitária e auto suficiente, que cansa de renegar a si mesma e se liberta de correntes sociais que a afligiam.

Repleto de cores vibrantes, cenários fabulosos e um trabalho ousado - e excelente - de fotografia, o filme é eficiente em ambientar o público e transportá-lo através do tempo e do espaço, trazendo aos espectadores a China do período histórico da Dinastia Tang (quando o lendário poema 'A Balada de Hua Mulan' foi escrito). É uma obra que definitivamente merecia o glamour das grandes telas do cinema, e que acabou sendo mais uma vítima da circunstância atual. A Mulan de 1998 se tornou um símbolo para garotinhas de todo o mundo em sua época, e a Mulan de 2020 tem tudo para traçar o mesmo caminho. Sem as canções clássicas (as melodias foram agregadas à trilha sonora instrumental) e o dragãozinho dublado por Eddie Murphy, o tom amadureceu para acompanhar aquelas crianças de duas décadas atrás e evoluiu em técnica e estudo cultural, dispondo elementos belíssimos da cultura chinesa e de suas histórias fantásticas. 'Mulan' de 2020 é um reflexo da atualidade que traça um infeliz - e ainda verossímil - paralelo com a necessidade atual da luta feminina por respeito. Mulan não é somente respeitável como também é admirável. É um exemplo a ser seguido, e se algum dia eu tiver uma filha, vou apresentar Mulan como um ícone que a represente. Ir para a guerra também é coisa de mulher, mesmo embora essa guerra não exija que ela empunhe uma espada.

Vale Ver !



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