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As prioridades invertidas de 'Tenet' | 2020

NOTA 8.0

O DeLorean de Christopher Nolan

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

O jogo que mais se popularizou em 2020, com um grande mérito ao cenário de pandemia, foi o multiplayer online Almong Us. O jogo se assemelha muito aos jogos de roda de antigamente, mas agora aplicado em um cenário virtual. Em essência, um grupo de pessoas tem que descobrir quem é o assassino - ou, nesse caso, "o impostor" - o quanto antes e evitar que o massacre continue. Apesar de não tê-lo jogado, me recordo de um meme que viralizou nas redes há algumas semanas, que dizia "todo mundo pergunta quem é o impostor, mas ninguém pergunta como vai o impostor". E a essa altura você deve estar se perguntando o que isso teria a ver com 'Tenet', e eu já explico; mas antes, é necessário destacar que alguns títulos da filmografia do diretor, produtor e roteirista Christopher Nolan possuem um grau de conjunções adversativas que, apesar de não tirarem o brilhantismo de suas obras, deixam a impressão de que falta alguma coisa. 


Em 'Interestelar', de 2014, por exemplo, temos uma visão magnífica de metafísica e filosofia moral sendo debatida; contudo, faltou o olhar contemplativo de Cooper (Matthew McConaughey) perante a imensidão do espaço e diante de fenômenos inéditos à humanidade. Em 'Dunkirk', de 2017, vemos uma releitura do DIA D sendo arquitetada com maestria em pontos de vista e tempos distintos; todavia, não existe um desenvolvimento de personagens que consiga promover grande empatia ou um apego significativo de modo que o público se importe efetivamente com cada um deles. E em 'Tenet', que se estabelece como o maior nome do cinema em 2020, somos apresentados a um conceito muito interessante e eficiente, com uma complexidade charmosa e bastante sedutora; porém, há uma frieza calculista que distancia os espectadores de um envolvimento íntimo com os protagonistas e com suas motivações. É como se o filme partisse do pressuposto de que todo o público quisesse saber "quem é o impostor" e ninguém se importasse como ele está se sentindo. Há problema nisso? Teoricamente não, desde que o filme se proponha a ser somente isso - o que não é o caso de 'Tenet'. O longa parece querer que o público se importe e mas ao mesmo tempo não se esforça para provocar essa importância. Falta aqui a substância humana, o fator da empatia, a condição de transcender a tela e fazer o público viver a problemática apresentada. 

'Tenet', como já sugere seu título palíndromo, propõe uma inversão - que nesse caso é temporal - cujo significado é o mesmo independente de qual seja a direção tomada. A jornada do Protagonista (que é a versão nolanesca do icônico Homem Sem Nome vivido por Clint Eastwood, em um contexto de espionagem) vivido por John David Washington é trabalhada com uma riqueza de detalhes tão mínimos que uma simples desviada de olhar para o lado pode interferir no entendimento da totalidade que o filme é, com seus efeitos práticos e camadas interligadas. É uma obra que tende a surpreender pela sua técnica e pela ousadia das coreografias muito bem elaboradas; e é claro, 'Tenet' é um dos filmes mais difíceis de editar em toda a história do cinema (isso segundo o próprio Christopher Nolan, que convocou para essa árdua e desafiadora tarefa a talentosa editora Jeniffer Lame, que trabalhou nos filmes de Ari Aster e foi responsável pelos filmes de Noah Baumbach desde 'Frances Ha'). Podemos dizer que as categorias técnicas da próxima temporada de premiações já possuem um destino certo. Mas e a percepção acerca da condição humana, onde fica? O filme é megalomaníaco e assume seu caráter rapsódico nas entrelinhas do desenvolvimento de seus atos, mas enquanto promove um debate em torno da finitude e mortalidade do indivíduo ele se abstém ao mesmo tempo de incitar qualquer urgência emocional. A título de comparação, assistir 'Tenet' é como degustar um prato delicioso, com um sabor espetacular, mas extremamente seco. Mesmo sendo muito bom, falta-lhe algo que o ajude a ter liga para tornar a ingestão mais agradável. 

Embora seu roteiro tenha um emaranhado de reviravoltas e seja complexo em si mesmo, o filme tem uma postura um tanto quanto previsível. A idealização é genial, tal qual ao seu criador, só que a concepção dessa ideia dá muitas pistas sobre seu desfecho sem necessariamente explicá-lo. Ao invés de nos falar para onde quer ir, ele já mostra exatamente onde vai chegar. É como se o filme desse spoilers sobre si mesmo a todo instante, e por isso a trama não é tão surpreendente quanto poderia ser. Aos mais atentos, é fácil se antecipar aos eventos que são apresentados e revisitados nas 2h30 de película. Esses traços, é claro, não diminuem a grandiosidade do filme e nem comprometem a experiência de assisti-lo; mas arriscam a atenção dos espectadores ao apostar em uma ação que por vezes parece ser meramente uma técnica pela técnica, como se Nolan quisesse fazer cenas visualmente épicas e tivesse inventado um contexto para inseri-las. Em um todo, 'Tenet' é um passeio que vale a pena embarcar e se deixar levar, mesmo que sabendo de antemão onde ele vai terminar. Sua graça não está no destino, mas sim na jornada - que é algo satisfatório e vale a pena ser apreciado na maior tela possível. Por fim, o novo filme do diretor da obra-prima 'A Origem', lançado dez anos atrás, mostra que é um dos mais ambiciosos de sua carreira, e consegue o feito de ser um enorme clichê sem ter clichês - se é que isso é possível.


Vale Ver! 



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