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Os arquétipos do luto em ‘Se Algo Acontecer… Te Amo’ | 2020

NOTA 10

“A coisas mais bonitas do mundo são sombras” - Charles Dickens

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

A sombra, segundo a psicologia analítica de Carl Jung (um psiquiatra e psicoterapeuta tão relevante quanto seu amigo Sigmund Freud), é um dos arquétipos mais importantes no estudo que busca a compreensão do comportamento humano. Não existe qualquer processo terapêutico que se incline à obtenção de sucesso sem que o indivíduo seja levado a enfrentar sua própria sombra. A sombra é uma práxis de tudo que não se apresenta à luz da consciência, indo desde coisas que ficaram reprimidas (ou negadas) e indo até aquelas não vivenciadas. Sombras são desejos íntimos que muitas vezes o indivíduo nem sequer desconfia que tem, sendo elas muito maiores do que as capacidades do ego consciente, atuando de modo a influenciar o mesmo sem que o indivíduo nem ao menos perceba tais influências. A sombra não é necessariamente boa ou má, ela apenas é a “encarnação” das frustrações e desejos mais íntimos que, muitas vezes, não são assumidos ou reconhecidos pelo próprio indivíduo que a porta. E a essa altura, depois de tantas informações relacionadas à psicologia, você talvez deva estar se perguntando o que é que tudo isso tem a ver com ‘Se Algo Acontecer… Te Amo’, o novo curta-metragem da Netflix que foi lançado em novembro de 2020 em um dos momentos mais críticos da pandemia do novo Coronavírus; e a resposta é: absolutamente tudo.

A obra genial de apenas 12 minutos não é somente excelente como também é demasiadamente relevante para o momento de sua estreia. ‘Se Algo Acontecer... Te Amo’ é uma animação com traços belos e delicados, contornada com intensidade em grafite com fundo branco. Trata-se de uma história sobre amor e luto que narra a difícil convivência de um casal após uma tragédia, onde revolta, tristeza e apatia são apenas algumas das emoções esboçadas nos semblantes de seus protagonistas. Por ser tão intimamente humano e tratar o caráter do luto de uma maneira quase universal, o filme vem fazendo bastante sucesso com o público - algo raro por se tratar de um curta-metragem. Tendo sido co-dirigida e escrita por Michael Govier e Will McCormack (atores das séries ‘Família Soprano’ e ‘This is Us’), a produção rodou diversos festivais ao redor do mundo e ganhou o prêmio do Júri de Melhor Curta-metragem no Festival de Omaha nos EUA. E podemos afirmar com segurança que sua presença é certeira no quadro de indicados ao Oscar de Melhor Curta-metragem em Animação, tendo ainda grandes chances de ser o vencedor. Com um visual simples e arrebatador para apresentar o roteiro introspectivo e cheio de metáforas e representações, o filme faz uso do artifício da sombra como uma face alternativa de seus personagens para expôr ao público seus anseios não verbalizados e as perturbações de seu distanciamento velado, como uma ausência espiritual que almeja um retorno que não acontecerá. Em outras palavras, o filme é uma aula de como aprender a lidar com a dor e, por consequência, seguir com a vida quando aparentemente não existem mais forças para isso - e essa artimanha é manifestada através de memórias que se encarnam nas sombras e se mesclam ao presente momento do casal.

Enquanto a consciência é limitada e finita, o inconsciente é um universo sombrio e inexplorado, com formas e interiores diferentes variando de acordo com cada pessoa. Lá ficam guardadas as informações que, muito provavelmente, não teríamos sanidade suficiente para lidar. E muito embora seja essa a interpretação mais imediata dentro do contexto de ‘Se Algo Acontecer… Te Amo’ (a junguiana), existe também espaço para um vislumbre pelo ângulo do mito platônico em que Aristóteles debate sobre a consciência e a verdade por trás das aparências, que conhecemos historicamente como Alegoria da Caverna. Nesses inscritos, Platão expõe o argumento aristotélico onde é ilustrada a presença de alguns prisioneiros acorrentados em uma caverna. Em sua condição (isto é, tendo nascido lá dentro sem nunca ter visto o mundo exterior), eles conhecem apenas as sombras que são projetadas nas paredes por uma fonte de luz fora da caverna e, desse modo, consideram as sombras como uma realidade absoluta. Um dos prisioneiros, no entanto, consegue se libertar das correntes que o prendiam e sai da caverna, podendo assim vislumbrar as coisas como elas realmente são. A princípio essa saída das sombras lhe dói os olhos, mas ele gradualmente se acostuma com a luz até chegar a uma condição de plenas capacidades para a contemplação completa daquilo que o cerca. O casal apresentado em ‘Se Algo Acontecer… Te Amo’, ao contrário dos prisioneiros do mito, já conhecia a luz e o mundo fora da dor em que se encontravam - mas se aprisionaram no vazio deixado após o trauma e preferiram permanecer na sombra até que, por fim, se deram conta do quão necessária era uma ascensão à luz - que aqui é a saída do breu do luto. A princípio esse processo dói do mesmo jeito que doem as vistas do prisioneiro que fugiu da caverna, e o curta-metragem se propõe a tratar essa jornada dolorosa rumo à iluminação com uma sensibilidade absurdamente grande. A jornada deles se dá na saída da caverna onde se auto-aprisionaram para encararem a luz que produz as sombras que habitam silenciosamente seu meio, e reconhecerem o brilho que há por trás delas.

O título original do curta, ‘If Anything Happens I Love You’, pode ser mais devidamente traduzido em pluralidade como ‘Se Algo Acontecer… Amo Vocês’, que é a última mensagem de texto a chegar aos pais enlutados que conhecemos nessa magnífica obra cinematográfica. O pequeno filme aborda uma polêmica da sociedade norte-americana que, infelizmente, já reverberou no Brasil como um eco da disparidade social e da insanidade que permeia a ausência do espírito comunitário. Pelas palavras de Karina Massud, "‘Se Algo Acontecer...Te Amo’ é uma reflexão triste e impactante da violência cada vez mais presente no nosso cotidiano”. Felizmente, para isso existe a arte, que nos permite diálogos mudos entre quem somos e quem queremos ser. Para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a arte é o único modo que nos permite enfrentar a dor da existência. Precisamos, mais do que nunca, de mais arte para compreendermos a nossa própria existência para então, consequentemente, continuarmos a viver.


Super Vale Ver !




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