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A luta pelo direito de soltar o canto de dor em 'The United States vs. Billie Holiday' | 2021

NOTA 7.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme 

Em certa passagem do encontro fictício de grandes personalidades trazido em “Uma noite em Miami”, Malcolm X indaga Sam Cooke sobre a forma como as obras do músico soavam alheias aos maus tratos vividos pela população negra dos Estados Unidos, inclusive comparando sua postura “indiferente” com a de Bob Dylan, um branco que parecia estar bem mais atento àquela terrível situação. No entanto, se Billie Holiday estivesse presente no filme de Regina King, tal cobrança jamais poderia ser feita.  Afinal, a artista pagou um alto preço pela coragem demonstrada ao continuar entoando a dolorosa letra de “Strange fruit”, denúncia poética acerca da prática de linchamento de negros, resultando em anos de perseguição por parte do governo norte-americano.

O longa de Lee Daniels (“Preciosa”-2009) já abre com uma impactante fotografia dessa prática punitiva bastante comum entre 1882 e 1968. A partir dessa imagem revoltante, o roteiro de Suzan-Lori Parks (baseado no livro "Chasing the Scream" de Johann Hari) vai nos apresentar Billie dando uma entrevista na qual relembrará os anos em que o FBI cerceava seu direito de cantar aquela que foi considerada pela The Megazine a canção do século, pois, nas palavras de um de seus maiores algozes, ela “incitava o povo do jeito errado”.

Além disso, outros aspectos controversos da vida da estrela do jazz serão abordados tais como sua infância traumática, sua bissexualidade, os diversos relacionamentos abusivos por quais passou e o vício em heroína, fato este que serviu como justificativa pública para que o FBI ficasse no seu encalço. Assim, a guerra contra as drogas travada por um governo moralizante camuflava a censura imposta a quem queria expressar sua indignação contra o extermínio: “Minha canção lembra que eles estão nos matando.”.

É possível dizer que há um paralelo entre os acontecimentos de “The United States vs. Billie Holiday” com os retratados em “Judas e o Messias Negro”, outro longa celebrado neste período de premiações. Em ambos os projetos temos agentes negros infiltrados pelo governo para tentar ganhar a confiança de vozes potentes contra a segregação para depois silenciá-las. O “traidor” da causa, neste caso, é representado pela figura do agente Jimmy Fletcher, interpretado por Trevante Rhodes, mais conhecido por seu papel em Moolight”. Porém, diferente dos dilemas morais experimentados pelo Bill O’Neal de Lakeith Stenfield, a narrativa aqui prefere explorar bem mais as contradições de Fletcher pelo viés amoroso.

Mas, se em “Judas” os desempenhos dos atores centrais funcionam como peças fundamentais numa engrenagem bem estruturada, pode-se dizer que alguns dos problemas de “The United States vs. Billie Holiday” se diluem na grande atuação de Andra Day. Nessa cinebiografia, que até sabe fugir bem do costumeiro tom de homenagem, mas sem ir muito além em suas possibilidades e carecendo de um pouco mais de ritmo a certa altura, é a cantora do hit “Rise up”, indicada ao Oscar em sua estreia nas telas, quem garante a qualidade do show, e não seria injustiça alguma se ela vencesse uma das categorias mais disputadas do ano.

História de uma mulher que encarou inúmeras adversidades, entre elas os ferrenhos racismo e machismo de sua época, a trajetória de Billie Holiday, além da óbvia importância social e cultural para seu país de origem, tem muito a nos dizer sobre o Brasil de hoje. Num período em que artistas e formadores de opinião se veem mais uma vez ameaçados por conta do conteúdo de suas críticas, quando heranças de tempos sombrios retornam como instrumentos de intimidação, Lady Day, em sua luta para continuar soltando a voz sem se importar com eventuais retaliações, faz brotar em nós o também estranho - principalmente numa sociedade indiferente a linchamentos como a nossa - fruto da coragem.


Vale Ver!




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