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'Pânico' exalta o entretenimento condenando os agentes do mal | 2022

NOTA 9.0

"Eu ainda prefiro O Babadook"

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

O filme 'Desventuras em Série' (2004) possui diversas cenas com uma narração em off feita por Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler, interpretado por Jude Law), que é o autor dos livros que relatam os casos e percalços vividos pelos três órfãos Baudelaire enquanto são perseguidos pelo terrível conde Olaf. Nas considerações finais, após a leitura da carta dos falecidos pais, há uma fala de Snicket que agora resgato para a sua apreciação. Ela diz: "A passagem de uma tocha é um rito de passagem que pode assumir muitas formas". Tendo decoradas as falas desse filme desde a infância, logo me recordei do trecho em questão enquanto assistia ao novo filme da franquia 'Pânico', que é o primeiro grande lançamento de 2022. 'Pânico 5', como é popularmente reconhecido, ou apenas 'Pânico', que é o título oficial (mesmo tendo 4 outros filmes o antecedendo, incluindo um homônimo), é uma passagem de tocha belíssima para uma nova geração de personagens e espectadores mais jovens, que talvez ainda não conheçam o espírito inventivo do finado criador da franquia, Wes Craven. O roteiro desse quinto capítulo, assinado por Guy Busick e James Vanderbilt, é repleto de homenagens e apresenta algumas passagens corajosas, assumindo alguns riscos para dar ao trio anterior de protagonistas motivações cabíveis para voltar a enfrentar o espectro do ghostface enquanto o pesadelo de ser o alvo de um estranho mascarado agora passa a ser de outras pessoas.

Pode parecer ao público que o 'Pânico' de 2022 navega pela mesma maré em que passou o 'Halloween' de 2018, mas deve-se ter cuidado com esse equívoco. Enquanto 'Halloween' ignorou todas as sequências do clássico e considerou apenas o primeiro como canônico em seu novo arco, 'Pânico' de 2022 faz justamente o oposto e se empenha em considerar seus quatro predecessores, confirmando os impactos de cada um deles em afirmações que aparecem pontualmente em tela, seja em comentários sobre os massacres anteriores, sobre o número de facadas que cada um já tomou ou ainda com doses de sarcasmo, com críticas internas que propositalmente soam pejorativas mas na verdade são um viés cômico com teor autodifamatório. O que ambos, 'Halloween' e 'Pânico', têm em comum, além de assassinos seriais mascarados que adoram usar armas brancas para consumar o destino de suas vítimas, é a escolha de reciclarem o título de seus originais para vendê-los como novidade para o novo público. Um fato conhecido da indústria é que uma numeração atribuída a sequência leva o público a crer ser necessário assistir aos demais anteriores para entender o filme em questão, e por preguiça cultural muitos acabam por desistir da sessão por receio de não entenderem a obra individualmente. Como resultado, a bilheteria do filme perde força e, como bem sabemos, o cinema também é um mercado - e, como tal, é movido monetariamente.

O próprio 'Pânico' brinca com sua posição dentro do cânone, levantando questões sobre ser uma sequência, um reboot ou um spin off. Cria-se aqui o termo "requel", que mescla reboot e sequel, que acaba sendo o mais apropriado para enquadrar sua configuração dentro da própria série. Além dessa questão, o longa levanta também comentários pertinentes sobre a indústria como um todo, fazendo citações ao terror contemporâneo e lembrando personagens clássicos de outras franquias. O diferencial aqui em relação aos quatro filmes anteriores é que a direção de Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillertt, ambos de 'Casamento Sangrento' (2019),  permite à franquia a auto-referência como forma de prestar homenagens ao mito que a própria franquia construiu. Ao honrar o legado de Wes Craven, o novo 'Pânico' acaricia os fãs que lamentaram a morte do criador falecido em 2015 e mostrou que o que Craven fez persiste e se tornou uma tendência replicada em vários gêneros, inclusive no recente 'Matrix: Resurrections'. 

E por falar em 'Matrix', devo dizer que 'Pânico' acerta onde 'Resurrections' mais pecou. A auto afirmação, para o bem ou para o mal, sempre é vista com maus olhos. Enquanto o filme de Lana Wachowski referencia e reverencia a si mesmo como uma obra-prima (o que o primeiro 'Matrix' de fato é), o quinto 'Pânico' ri de suas próprias pieguices. Contudo, a principal diferença é que enquanto o quarto 'Matrix' parece lamber o próprio saco sem muita inspiração, 'Pânico' se agrega à própria crítica que faz e se reinventa a partir daí, mas sem perder sua essência e sem deixar de apresentar a marca que o torna reconhecível. Pânico cita o terror contemplativo e introspectivo que tem ganhado força desde meados da última década com 'A Bruxa' (2015) e menciona desde diretores que se consagraram no gênero (como Jordan Peele) até estrelas de filmes "ressuscitados" recentemente (Jamie Lee Curtis). Até mesmo a tecnologia é um ingrediente para o terror, e isso é uma crescente desde o filme de 1996. Se no primeiro tínhamos o VHS no centro do debate quanto a estrutura dos filmes de terror daquela época, aqui temos o streaming; se antes tínhamos o telefone fixo como prenúncio às mortes, agora temos smartphones com infinitos aplicativos que permitem trancar portas e denunciar localizações. 'Pânico' usa muito bem o avanço tecnológico quando decide agregá-lo ao invés de simplesmente fingir que o mundo ainda é o mesmo. 'Pânico' evoluiu com o mundo, e a autoconsciência que se vê na tela, onde o filme reconhece a si mesmo como filme, é uma metalinguagem deliciosa e hilária de acompanhar.

Assim sendo, o que permanece após o excelente entretenimento da sessão, ecoando como um lembrete para a vida, é a mensagem de não glamourização do horror e daqueles que o propagam. Gale Weathers entende isso e decide não dar publicidade ao caso. Não nos enganemos; o mal existe, é um fato lamentável, mas isso não significa que seus propagadores mereçam os holofotes e o reconhecimento que tanto almejam alcançar sob as custas da ceifa de vidas. A vilania aqui apresenta sua posição como um efeito colateral da admiração, em um discurso que culpa as vítimas pelo que estão sofrendo. Ao flertar com a temática, o filme escancara o que é debatido diariamente em fóruns de violência na internet, onde fanáticos rendem "homenagens" aos seus ídolos promovendo massacres em escolas ou entre familiares. O filme abre seu terceiro ato praticamente dizendo "chega de fechar os olhos para isso, precisamos conversar a respeito", mas de forma bem humorada e didática. Voltando a citar 'Desventuras em Série', fica o registro: "há pessoas que não conhecem o sofrimento, e encontram conforto em filmes alegres com passarinhos cantando e elfos risonhos". Essas pessoas precisam assistir 'Pânico'. Não há nada de errado com o terror enquanto gênero audiovisual, entretenimento casual e até mesmo fonte de pensamentos críticos acerca da sociedade; o erro está no propagar da violência gratuita como esporte ou solução de conflitos, no promover da intolerância em suas múltiplas camadas e no ímpeto egocêntrico de querer "entrar para a história" através de assassinatos para se provar sabe-se lá para quem for. A sociedade atual tem visto isso ser alimentado repetidas vezes nos fóruns da rede, e a arte está aí para gerar consciência e empatia.

Por fim, 'Pânico' mais uma vez se prova necessário e, inclusive, nobre. O filme obtém sucesso em sua proposta, e é um pontapé inicial maravilhoso para o cinema de 2022. Todavia, isso não significa que seja perfeito. Há alguns pontos que carecem da boa vontade dos espectadores, como o fato de parecer ter somente uma paciente e um vigilante durante a noite no único hospital da cidade. Onde estaria a equipe de enfermagem? E os outros pacientes, não ouvem gritos e tiroteios? Enfim, entre isso e mais algumas conveniências de roteiro que aparecem aqui e ali, o que importa é que a essência permanece e o legado de seu criador é honrado e ovacionado com louvor. Wes Craven pode descansar em paz pois sua obra não foi profanada e, pelo menos até agora, está em boas mãos.


Super Vale Ver!



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