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'Um Herói' : mais um angustiante exemplar da narrativa "areia movediça" de Asghar Fahradi | 2022

NOTA 9.5

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Na cultura grega, a figura do herói representa alguém que, devido aos feitos valorosos que efetua ao longo de sua vida, atinge posição de prestígio e notoriedade. Quase sempre semelhantes aos deuses em poderes, com a única e gigantesca diferença de serem mortais, muitos, como Aquiles e Odisseu, eram caracterizados por um certo egoísmo que, hoje, os diferencia bastante da visão moderna deste arquétipo. Dotados de uma noção de sacrifício, os heróis de hoje, que podem ser personagens fictícios como Peter Parker, ou até mesmo algum bombeiro que tenha trabalhado além do que o dever lhe cobra em tragédias como a de Petrópolis, são os mais perfeitos símbolos da doação. Portanto, seja pelo exemplo de coragem, força e astúcia quase divinas; seja pelo altruísmo e desprendimento em prol do bem comum, ambas proposições acabam conferindo um caráter pedagógico às suas aventuras. E o que Asghar Farhadi propõe com "Um Herói" - este artigo indefinido já é um forte indício - é usar a jornada de Rahim (Amir Jadidi) para oferecer ainda mais nuances ao confrontar este conceito, levando em conta sua "necessidade" para uma sociedade como a iraniana. 

Já na primeira cena, tomamos ciência de como Farhadi vai trabalhar tais perspectivas. Vemos Rahim, um homem preso pelo não pagamento de uma dívida, saindo do cárcere após receber um indulto de dois dias. Filmado com uma distância que o apequena, ele se mistura à cidade até chegar ao imponente túmulo de Xerxes, localizado nas ruínas de Persépolis. Trata-se, então, de um ser praticamente invisível naquele ambiente, misturado à areia movediça de uma paisagem social que o engole.  


Após a tentativa frustrada da venda de uma bolsa com moedas de ouro encontrada por sua namorada - que é mantida em segredo -, o protagonista (termo cujo significado curiosamente remete a "aquele que age" em grego) tem a ideia de devolvê-la à dona. Não demora para que este gesto nobre ganhe notoriedade e comece a ser explorado por aqueles que o cercam, como os diretores da penitenciária. A partir daí, a narrativa do longa se tornará mais um daqueles labirintos que envolvem moralidade e convenções sociais bem aos moldes dos premiados "A Separação" e "O Apartamento", obras angustiantes nas quais cada atitude em busca de uma saída gera uma consequência que só potencializa o drama.  

O mais instigante nas histórias contadas pelo autor do também magistral "O Passado", é que ele não está em busca de oferecer ao espectador o dono da razão dentro daquele imbróglio. É impossível, por exemplo, dizer que o homem que cobra a dívida de Rahim seja uma espécie de vilão e, por isso, odiá-lo. Cada motivação é cuidadosamente apresentada e desenvolvida para que percebamos que o problema está naquela estrutura social, que leva homens, geralmente os mais humildes, a se endividarem para que tenham alguma chance de ascensão, assumindo, sem pestanejar, o risco de irem parar atrás das grades caso não efetuem o pagamento. 

Por isso, Rahim, esse misto de Ulisses e Josef K., vai pouco a pouco se desesperando à medida que cada passo seu nessa areia movediça social (e de narrativas que se sobrepõem) só o faz afundar ainda mais. Garboso e adorando seus quinze minutos de fama num primeiro momento, não tarda para que ele comece a tomar atitudes questionáveis como explorar a gagueira do filho - armadilha apontada através de uma também perigosa metalinguagem - no intuito de comover o maior número de pessoas e, com isso, aumentar a pressão da opinião pública para o perdão de seu credor: "Não me importo com o dinheiro. Só com a minha honra.", é a frase que resume bem o que lhe restará como batalha a certa altura. 

Em mais um projeto que nos desafia por ignorar maniqueísmos, Asghar Farhadi fala de um país que, paradoxalmente, espreme a moral de seus cidadãos justamente por colocá-los no limiar entre as tradições - e toda a importância que elas dão à reputação - e a modernização fruto de uma abertura capitalista que aponta o empreendedorismo como alternativa para obtenção de riqueza e admiração. Ao contrastar, por exemplo, o jantar servido no chão, como reza o costume, e crianças imersas em seus aparelhos eletrônicos, o diretor sutilmente nos fornece uma pista acerca de um dos maiores dilemas que aquele país precisa enfrentar. Seu cinema objetiva metaforizar tais encruzilhadas e, talvez, poucos planos dentro de sua riquíssima filmografia simbolizem tão bem isso quanto o que encerra a jornada fracassada desse "herói": a mais perfeita tradução imagética de um estado-prisão do qual poucos (como o próprio cineasta) conseguem escapar.   


Super Vale Ver!




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