'Madrugada em Paris' : longa francês traz um médico que trafega entre a dor alheia e a própria | 2022
NOTA 7.5
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
Socorro, não estou sentindo nada (Arnaldo Antunes)
Existe algo das tramas noturnas passadas em veículos realizadas por Martin Scorsese em "Madrugada em Paris", produção francesa exibida no Festival de Cannes em 2020 e no Festival Varilux do ano passado. É possível ter através da jornada de Mikaël, médico que passa as noites perambulando pelos subúrbios de Paris atendendo a chamadas de emergência, um pouco daquela percepção de uma metrópole degradada que acomete o psicótico Travis Bickle em "Taxi Driver", assim como a exaustão física e mental diante da dor humana experimentada pelo motorista de ambulância vivido por Nicolas Cage em "Vivendo no Limite", que muitos apontam como um derivado do clássico de 1976.
Espécie de "santo dos drogados", como é verbalizado em dado momento, Mikaël é sujeito em crise e que, entre um atendimento e outro, sem ter qualquer substância que lhe amenize a dor da existência, fornece conforto químico através da venda de receitas num esquema envolvendo o primo farmacêutico e um traficante. Com casamento indo de mal a pior, situação agravada por um relacionamento extraconjugal, afunda-se no trabalho como quem paga algum tipo de penitência.
Ao contrário do veterano de guerra vivido por Robert De Niro, não almeja a limpeza violenta da escória que infesta sua cidade, tampouco carrega nas costas o sem-número de pessoas que porventura não conseguiu ajudar como ocorre com o zumbi atrás do volante no subestimado longa de 1999. Embora comungue em certa medida de um mal-estar similar ao dos insones escritos com a tinta do desamparo por Paul Schrader nas obras de Scorsese, o que transparece na competente atuação de Vincent Macaigne e exemplificado com perfeição na cena em que seu personagem desce os vidros do carro para respirar por poucos segundos, é que tudo está diretamente ligado às suas escolhas pessoais.
Questionado, sob o risco de investigação, se o que faz possui algum fundo político, Mikaël prontamente confirma, mesmo sem ter a certeza disso. Da mesma forma declara amor à esposa e, logo em seguida, não resiste a uma nova aparição da amante. Contraditório e, portanto, humano, demonstra que a resposta dada ao já referido apelido que lhe puseram pode ser sua única verdade: "Sou tudo, menos santo".
Enxuta e bastante dinâmica, a narrativa proposta por Elie Wajeman ("Os Anarquistas" - 2014) consegue ser febril nos momentos em que investe no suspense e sagaz o suficiente para oferecer ao espectador pausas, sobretudo quando o protagonista se dedica a seus pacientes. Não à toa, uma das cenas mais ternas do filme traz justamente uma "troca" de diferentes formas de analgésicos - uma para o corpo, outra para a alma - envolvendo uma idosa e seu piano.
Mesmo que o ponto de chegada seja até certo ponto previsível, seria injusto dizer que a tensão não nos acompanha desde o embarque no plantão do doutor Mikaël. Homem em rota de colisão com as consequências de suas atos - opção de roteiro que também aproxima o projeto do intenso "Joias Brutas" -, o caminho trilhado por este anjo noturno de postura curvada, que veste uma jaqueta preta no lugar do jaleco e que sabe ser agressivo quando necessário, funciona como um eficaz comprimido de oitenta e dois minutos para estes tempos cada vez mais duros , cujos efeitos nos fazem perceber que viver hoje sem algum tipo de anestesia (e a arte talvez seja a melhor delas) é praticamente impossível.
Vale Ver!
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