'Klondike – A Guerra na Ucrânia' encena os eventos que prenunciaram o maior conflito bélico em território europeu das últimas décadas | 2022
NOTA 8.5
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
Existem filmes que não fazem questão de poupar o espectador do horror que tentam retratar. Para obras assim, eventuais concessões acabam por corromper em certa medida o espelho almejado na reprodução da barbárie causada por seres que perderam sua humanidade, sobretudo em situações decorrentes de conflitos armados. É preciso ver para se ter a real dimensão. Assim, colocando-nos na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, “Klondike – A Guerra na Ucrânia” nos fará observar os eventos que antecederam o atual massacre que vem ocorrendo no país comandado por Volodymyr Zelensky que, obviamente, afeta bem mais a vida dos cidadãos comuns, obrigados a testemunhar a transformação de suas cidades em campos de batalha e de seus lares em trincheiras.
Situada em 2014, a trama nos faz ver tudo pela ótica do casal Tolik (Sergey Shadrin) e Irka (Oksana Cherkashyna) que, enquanto aguardam o nascimento do primeiro filho, tentam sobreviver num vilarejo da região de Donetsky em meio ao conflito que ficou conhecido como a Guerra de Donbas. Já na cena de abertura, a escuridão da casa onde vivem e a intimidade proposta em diálogo no qual planejam o futuro são interrompidas por uma explosão que deflagra o término da paz para eles. A partir disso, o enorme buraco na parede resultante – fica-se sabendo depois – de um erro provocado pelo amadorismo no manejo de armas empunhadas por homens comuns, transformados do dia para noite em soldados, será a imagem que representará a ruína definitiva de uma já frágil vida a dois e, em leitura mais ampla, de toda uma nação.
Filmado com minúcia desde a referida sequência de abertura, o longa de Maryna Er Gorbach trabalha com planos longos, através de demorados travellings e cuidadosas panorâmicas que exploram a capacidade do extracampo em produzir tensão. A diretora também é hábil, em sua arquitetura da destruição, ao articular diversos elementos dentro do quadro, em composições visuais que se valem da amplitude dos espaços abertos, que formam uma paradoxal prisão para os protagonistas, decisões estéticas que impressionam pelo planejamento que parecem ter demandado. Outro aspecto importante dentro da bela cinematografia da obra é a simbologia dos elementos em suas imagens: a ironia no detalhe do papel de parede com uma paisagem tropical, a boca do fogão e a chama que se acende numa referência ao tão disputado gás natural do lugar e, principalmente, o imenso buraco na parede da casa, metáfora para a vulnerabilidade ali vivida, formando uma janela deformada que aponta para um horizonte tenebroso.
Contudo, se o filme apresenta uma esmerada lapidação visual, o mesmo não se pode dizer do desenvolvimento das situações vividas pelos personagens que, assim como a câmera de Svyatoslav Bulakovskiy, parecem girar, muitas vezes, ao redor do próprio eixo. Fora isso, o roteiro de Er Gorbach (também responsável pela montagem) cria algumas atitudes inverossímeis que soam pensadas exclusivamente para aumentar a escala dramática de suas consequências, não levando em conta o instinto de sobrevivência que normalmente aflora em contextos semelhantes.
Premiado em Sundance e Berlim, “Klondike – A Guerra na Ucrânia” é, lamentavelmente, um filme que chega com um timing perfeito, pois seu lançamento encontra um confronto ainda em curso, e serve para complementar o duro retrato visto diariamente nos telejornais. Dedicado às mulheres, o microcosmos cercado pela iminência da morte brutal concebido pela diretora traz um punhado de momentos aflitivos como o que mostra uma implacável inversão de um clichê de esperança através da chegada de uma nova vida. Afinal, diante do horror que animaliza, como é possível vislumbrar o nascer de dias mais felizes? O choro que se mistura aos gritos, provenientes das dores do parto, representa o desespero de quem acaba de sair de um invólucro protetor para chegar a este mundo onde a sensibilidade e a compaixão não passam de escombros. O mal-estar nos que ainda resguardam algum traço de humanidade é inevitável.
Vale Ver!
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