“O Acontecimento' : vencedor do Leão de Ouro em Veneza, longa aborda de forma madura o delicado tema do aborto | 2022
NOTA 9.0
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
2021 parece ter sido um ano em que o cinema francês esteve voltado para temas considerados tabus. Recentemente, chegou às telas brasileiras o ótimo “Está Tudo Bem”, de François Ozon, que discutia a pesada questão da eutanásia de forma sóbria, sem jamais deixar de ser contundente. Outro belo exemplo dessa onda mais provocativa foi o furacão “Benedetta”, de Paul Verhoeven, produção franco-holandesa em que os pudores hipócritas da Igreja Católica eram mais uma vez colocados à baila. Agora, temos este “O Acontecimento”, longa que traz à tona o sempre delicado tema do aborto, a engrossar essa bem-vinda leva de obras oriundas da França que, felizmente, entendem a necessidade (ou vocação?) que a arte possui de balançar vespeiros sem medo.
Baseado no romance autobiográfico de Annie Ernaux, o projeto busca fazer com que o espectador se sinta tão encurralado quanto a protagonista. A câmera está sempre colada em Anne, inclusive quando a moça perambula desorientada pelo campus atrás de ajuda, uma decisão criativa que traz à lembrança a obra-prima “O Filho de Saul”. Outra opção que reforça o aprisionamento de Anne naquela situação-limite é a alteração da razão de aspecto promovida pela fotografia de Laurent Tangy – recurso utilizado, por exemplo, no cultuado “O Farol” -, que encaixota a personagem de tal forma que a sua aflição, com o avançar da gravidez e a iminência das provas, passa a ser nossa também. E obviamente que tal aproximação exigiria um grande repertório da atriz escalada para viver essa montanha-russa de emoções, missão esta que Anamaria Vartolomei cumpre com talento e garra exemplares.
Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, “L'Événement” (no original) não adere a julgamentos, algo que o moralismo da época exposta em tela faz de forma inclemente, mas também não nos poupa dos momentos mais duros. Sem pesar a mão, mas capaz de incomodar, Audrey Diwen realiza uma obra madura em sua condução (é apenas o seu segundo longa!) e traz para o centro do debate a individualidade feminina frente a um ambiente surpreendentemente machista – um centro acadêmico repleto de jovens num país que se vangloria de sua vanguarda intelectual –, para reafirmar o poder de decisão das mulheres sobre seus corpos, assim como sobre os rumos de suas próprias vidas.
Super Vale Ver!
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