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'Crimes do Futuro': O retorno às raízes de Cronenberg, o mestre do horror corporal I 2022

NOTA 8.0

Por Rafa Ferraz @issonãoéumacrítica 

Exibido no Festival de Cannes 2022 e marcando o fim de um hiato de oito anos de David Cronenberg, ‘Crimes do Futuro’ é um retorno às suas raízes, principalmente ao horror corporal, e apresenta um amadurecimento do ponto de vista técnico e narrativo uma vez que aqui as composições denotam uma sutileza pouco característica na filmografia do diretor. Muito embora este mais recente lançamento esteja longe de ser unanimidade até mesmo para os mais fervorosos “cronenbergueanos”, é inegável a autoralidade com que articula seus filmes do ponto de vista temático e visual, sendo capaz de gerar atração e repulsa em um só plano. 

Ambientado em um futuro não determinado, em que a humanidade se adaptou a um ambiente mais artificial e sintético, acompanhamos Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux), companheiros de profissão e famosos por comandarem uma apresentação artística onde, aos olhos de uma grande plateia, Saul é sujeito a cirurgias de remoção de órgãos, partes essas que ele é capaz de gerar de forma espontânea. Com a repercussão eles chamam atenção de uma dupla de agentes do governo, em especial Timlin (Kristen Stewart), que à medida que se aproxima de Saul, desenvolve uma estranha e obsessiva atração.

O longa parte de uma premissa interessante e abre diversos pontos de discussão e mesmo não concluindo todas elas de forma satisfatória, fornece suficientes insumos para reflexão e debate, a começar pela fetichização dos corpos, algo muito semelhante ao que fez em ‘Crash – Estranhos Prazeres”, além do conceito de arte e transcendência. O design de produção é minimalista. Exceto por alguns objetos de cena e dispositivos utilizados, a estética é bastante discreta, passando uma sensação de vazio e isolamento de um amanhã distópico e hostil a vida como conhecemos.

Sobre o elenco, Viggo Montensen dá vida a um intrigante personagem cuja dor não apenas faz parte da existência, como a eleva. A interpretação é segura, assim como sempre foi em boa parte da carreira. Já Léa Seydoux está operante enquanto figura secundária, perdendo a força quando assume protagonismo e descendo a ladeira de vez nas interações diretas com Mortensen, dado o abismo na qualidade de atuação entre os dois. Kristen Stewart parece silenciar cada vez mais seus críticos trabalho após trabalho. Pontual e precisa, a personagem por ela interpretada tem uma performance corporal digna de uma obra de Cronenberg. Em um dado momento em que contracena com Viggo Mortensen, bastaram um movimento de ombros, lentos passos para frente e poucas palavras ditas em baixo tom para termos uma sequência que mais parece um gato encurralando um rato. Dos arcos desperdiçados e não tão bem desenvolvidos, o de Timlin, infelizmente é o mais lamentável.

Após a sessão em Cannes houveram rumores de pessoas vaiando, passando mal e abandonando a sessão, algo muito típico quando se trata de obras controversas exibidas no tradicional festival francês, como ocorreu com o recente 'Titane', alvo de comentários semelhantes e mesmo assim vencedor da última palma de ouro. Diferente do que esse tipo de repercussão faz parecer, grandes nomes como David Cronenberg e Julia Ducournau estão longe de se utilizarem do impacto da imagem de forma despropositada, muito pelo contrário, a estranheza e a arte do incômodo são legítimas e quando bem empregadas carregam consigo boa dose de significação, dando assim muito mais sentido do que respostas, se ancorando sobretudo na lógica sensorial. ‘Crimes do Futuro’ nem sempre funciona, definitivamente não é genial, mas é acima da média e muito eficiente em quase tudo que se propõe.


Vale Ver!




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