Mostra SP : 'Exu e o Universo' | 2022
NOTA 8.0
“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje.”
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
Não é de hoje que templos de religiões de matrizes africanas vêm sofrendo ataques constantes como consequência de uma intolerância alimentada no Brasil durante séculos. Mesmo após a sanção da Lei 10.825, que em 2003 conferia ao cidadão a liberdade de exercer a fé de sua escolha, os mais de 300 anos de demonização dos rituais e da mitologia trazida pelos negros escravizados gritam alto até hoje. E tal estratégia de distorção, ainda colocada em prática por diversas congregações ditas cristãs, e as manifestações artísticas que a reverbera, formam o ponto de partida de “Exu e o Universo”.
Logo em seu início, o documentário dirigido por Thiago Zanato sobrepõe imagens de pinturas que reforçam um maniqueísmo tendencioso que coloca figuras associadas à cultura africana como representações do Mal. Quem nunca ouviu comentários discriminatórios sobre as oferendas, as vestes e as músicas que compunham os rituais da Umbanda e do Candomblé? Para tentar reverter isso de uma forma que alie didatismo e qualidade estética, tendo como voz proeminente o babalorixá e doutor em Sociologia Professor King, a narrativa terá como foco principal a desconstrução da imagem deturpada que foi erguida sobre o sagrado de povos ancestrais para que suas identidades possam finalmente ser reafirmadas após séculos de opressão.
Uma das lutas do líder nigeriano - que chegou a morar no Brasil - trazidas pelo longa é justamente de cunho linguístico, aspecto fundamental, mas que, geralmente, não recebe a valorização que lhe é devida. Nesse sentido, seu projeto mais importante foi a criação de um dicionário Iorubá, no qual inúmeras correções foram feitas, entre elas a que traduzia, inclusive na área de busca do Google, a palavra “Exu” com o significado de “Diabo”. Aberrações como essa só comprovam a necessidade de uma reescritura tanto no campo linguístico como também comportamental, ou seja, mudar a forma “terrorista”, segundo as palavras do Dr. Hédio Silva, com a qual a sociedade brasileira trata tudo aquilo que se refere às crenças do povo negro.
Com roteiro cuidadoso assinado pelo próprio Professor King, em colaboração com o diretor Zanato e Marcos “Nazi” Valadão (sim, o vocalista da banda IRA!), o longa, vencedor do prêmio de Melhor Documentário no Festival do Rio, é um verdadeiro banho de descarrego contra uma triste herança da colonização. Por isso, a beleza com a qual a dobradinha formada pela fotografia de Marco Antônio Ferreira, que enquadra movimentos e espaços de modo a exaltar seu caráter encantatório, e a montagem de Danilo Santos, repleta de fusões que evocam uma transcendência bem particular, ajudam a criar um senso metafísico poderoso que valoriza ainda mais o discurso de preservação cultural.
Se hoje estamos numa encruzilhada – bem diferente daquela na qual se deixa, respeitosamente, oferendas para as entidades – é porque deixamos a intolerância chegar ao poder. Portanto, um filme como “Exu e o Universo” chega num momento crucial para reforçar a ideia de que religiões essenciais na formação da identidade do povo brasileiro não podem continuar sendo sufocadas. E a citação ao ditado iorubá no início desse texto é para resgatar essa consciência, fruto de uma sabedoria milenar trazida da África nos porões dos navios, de que o verdadeiro mal foi plantado num passado distante e que é preciso combatê-lo com toda força hoje para que, no futuro, o Brasil se torne, enfim, uma nação democrática e igualitária em todos os sentidos. Laroyê!
Vale Ver!
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