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'Carvão' incinera as representações arcaicas do Brasil rural | 2022

NOTA 9.0

“A gente aprende a sofrer pra dentro.”

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

Há uma duplo encarceramento presente nesta frase dita por Irene (Maeve Jinkings) que representa uma questão central na dinâmica proposta por “Carvão”, estreia de Carolina Markowicz na direção de longas-metragens: ao passo que os personagens fazem da propriedade que abriga uma casa e uma carvoaria um invólucro no qual quem está de fora pouco sabe, com práticas e segredos acumulados por gerações, o sufocamento de desejos reprimidos pelos indivíduos que ali vivem tornam seus corpos verdadeiras celas solitárias nas quais a manutenção das aparências vai se tornando insustentável.     

Para reforçar tal ideia, os primeiros planos do filme se valem de ângulos que colocam os personagens ora atrás de grades de portas e janelas, ora encaixotados em enquadramentos extremamente desconfortáveis como o que traz Irene, mulher cujo olhar reflete o desespero contido de quem não aguenta mais viver naquele inferno, emoldurada pelo beliche caindo aos pedaços no qual o pai enfermo, colocado em primeiro plano e desfocado, está condenado a passar o resto de seus dias. Naquele momento, o destino do patriarca, que respira através de um cilindro de oxigênio como resultado de décadas exposto à fuligem e fumaça, é selado em diálogo cruel que espanta pela naturalidade. 

Após um vantajoso acordo financeiro, a família “substitui” o idoso enfermo pela presença do traficante em fuga interpretado por César Bordón (“Relatos Selvagens”), homem acostumado com os luxos bancado pela venda de drogas que servirá de combustível para o incinerador de relações já desgastadas, contaminando ainda mais aquela densa atmosfera familiar. A inércia de Jairo (Romulo Braga, em atuação que cresce junto com o chiado da panela de pressão) é evidenciada com a chegada dessa nova figura masculina, sem que isso signifique necessariamente a iminência de um embate, já que ele vive seus próprios dilemas pessoais – surpreendentes e representativos, diga-se – que o tornam praticamente alheio àquele grupo, inclusive, à aproximação gradual do filho pequeno (dono dos momentos de alívio numa trama incômoda) com o criminoso estrangeiro. Vale mencionar também a presença da vizinha vivida pela sempre competente Camila Márdila, que se mostra ambígua em relação às razões de sua curiosidade, proporcionando cenas que ampliam a tensão à medida que sua intromissão aumenta.

Contudo, desse ótimo elenco, é preciso dar o devido destaque à mais uma atuação gigantesca de Maeve Jinkings. É ela quem comanda este conto aterrador, com boas doses de um humor pontual que provoca risos de nervoso, que é a síntese de uma sociedade que banalizou o absurdo. Transitando entre a descrença apática, a sanha da chama de um tesão contido e a frieza extrema diante do horror, a atriz brasiliense se confirma a cada novo trabalho como um dos ícones recentes do nosso cinema. Sua performance aqui, auxiliada por uma sutil e bastante competente caracterização, engloba uma variedade tão grande de nuances que, certamente, será apontada como uma das melhores do ano e, claro, de sua até aqui irretocável carreira.

No que concerne aos aspectos técnicos da obra, é perceptível que tanto a fotografia de Pepe Mendes quanto a montagem de Lautaro Colace procuram criar, além da já referida sensação de aprisionamento, uma ironia envolvendo uma clara repressão sexual e, especialmente, a hipocrisia religiosa presente na maior parte das zonas rurais do País. Nesse sentido, a forma como são contrapostas a igreja bem cuidada e a pobreza da casa na qual vive a família de protagonistas é bem representativa, isso sem falar nos diversos símbolos de uma suposta fé que estão sempre visíveis nos momentos mais violentos do filme. Por falar em violência, chama a atenção a maneira que a direção de Carolina a constrói, como se ela fosse uma resposta natural, instintiva, em pessoas que perderam qualquer senso moral frente à necessidade de sobrevivência. E remetendo mais uma vez ao que não é visto, o extracampo e o desenho de som (a cargo de Diego Martinez e Filipe Derado) são bem explorados no intuito de consumir o espectador através do suspense que se estabelece pela sugestão de atos horrendos, algo que confere ao projeto uma potência dificilmente encontrada em outro longa nacional lançado em 2022.    

“Carvão”, portanto, impacta por nos soprar na cara as cinzas de uma paisagem humana devastada. Retrato que dissipa a fumaça a encobrir o interior de um país que carrega no nome – e nas práticas arcaicas que insiste em perpetuar – as chagas de sua tradição extrativista, e que permitiu o enraizamento de nossa miséria. Lugar onde a madeira apodreceu, cuja saída encontrada foi o fogo da danação, que não restaura, polui o ar...  tornando-o irrespirável. 


Super Vale Ver!



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