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'Aftersun' : uma singela investigação afetiva das memórias evocadas pelo registro | 2022

NOTA 10 

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme 

Acho legal que compartilhamos o mesmo céu... Às vezes, na hora do recreio, eu olho para o céu e, se consigo ver o sol, penso no fato de que ambos podemos ver o sol. Então, mesmo que não estejamos no mesmo lugar e não estamos mesmo juntos, nós meio que, de certa forma, estamos, sabe? Nós dois estamos sob o mesmo céu, então estamos meio que juntos.

Em dado momento de “Aftersun”, vemos uma foto tirada com uma Polaroid formando lentamente, pixel por pixel, uma imagem. Nela, estão Calum e Sophie, pai e filha que estão de férias na Turquia. Ouvimos suas vozes no extracampo, mas a atenção do espectador é preservada naquela revelação instantânea que dura alguns bons segundos. E por falar em tempo, poucas vezes, uma aparentemente simples imagem condensou de forma tão perfeita toda a proposta de um filme.  Pois é justamente sobre a tentativa de reconstrução de uma memória a partir do registro, uma investigação afetiva através do material sobre o que já não existe, que o belo longa de Charlotte Wells versará.

Logo na abertura, a pequena Sophie aprende a mexer na câmera digital que será sua companheira nos últimos dias de férias. Não demora até que percebamos que, na verdade, aquele vídeo caseiro está sendo assistido por ela já adulta. Seu olhar angustiado busca algo, as lembranças vão se formando, e pela observação de pequenos gestos vamos percebendo que lacunas existem tanto na relação que ela tinha com Calum quanto nas lembranças das vivências compartilhadas com ele, especialmente naqueles dias ensolarados no exterior.

Não é de hoje que a memória tem sido tema recorrente em diversas obras, mas chama a atenção como, mais recentemente, alguns projetos se dedicaram a observá-la levando em consideração as relações entre pais e filhos. Em “Meu Pai”, por exemplo, Florian Zeller nos atordoa com o esfacelamento gradual da percepção de mundo em um homem idoso e as consequências disso na vida de sua filha. Já em “A Filha Perdida”, outra obra bastante celebrada em 2021, a temática surge das reminiscências envolvendo as diferentes visões sobre maternidade surgidas da fricção entre uma experiente professora universitária e a família de uma jovem. Aliás, fora o fato de ambos representarem as estreias de suas respectivas realizadoras na direção de longas, vale mencionar outras semelhanças entre a adaptação do livro de Elena Ferrante e “Aftersun”.

A primeira similaridade está no fato de as duas tramas se passarem num cenário paradisíaco em meio a um período de suposto relaxamento, mas que nos deixam, cada qual a seu modo, a sensação de que algo está em desalinho. Além disso, é até possível dizer que a fotografia de Gregory Oke traz muito das composições visuais feitas por Hélène Louvart em “A Filha Perdida”.  Basta reparar na forma como ele enquadra as minúcias, aqueles momentos em que parece que nada está acontecendo, que evocam também os tempos mortos cheios de melancolia dos longas de Sofia Coppola; ou quando explora reflexos que, muitas vezes, nos relembram de que tudo é visto pela perspectiva da Sophie criança que, por sua vez, está sob a análise da Sophie adulta. Por essa razão que os livros de meditação dividem o espaço com a TV desligada que emoldura os personagens em certo diálogo, ou que a câmera não diegética se “confunde” com a portátil e vai buscar Calum fumando na varanda através do zoom in, ávida por algum detalhe que revelasse o que sua expressão tristonha escondia.  

Há de se destacar também como Wells é habilidosa ao desconstruir as expectativas do espectador especulativo, aquele moldado por narrativas padronizadas que estimulam a antecipação, para mostrar que um grande filme não precisa de eventos que rompam com a rotina dos protagonistas ou de eventuais ameaças plantadas pelo roteiro para nos instigar. Cada elemento ali, que vai do close das mãos apertadas num passeio de um barco ao convite frustrado para compartilhar uma canção de karaokê, foi semeado para favorecer o estreitamento dos laços entre pai e filha, vividos por dois atores em total sintonia.  Neste mosaico do tempo que não se pode efetivamente rebobinar, surgem naturalmente a preocupação com as companhias mais velhas, as primeiras descobertas com ou sem supervisão, o pedido de desculpas durante um banho de lama, os conselhos sobre um futuro incerto; são instantes fugazes que vão se acumulando de maneira incrivelmente sutil, ao ponto de nos sentirmos tão parte daquilo que, quando nos damos conta, a consciência do fim iminente já criou um nó gigantesco em nossas gargantas que nem uma sequência final nada menos que avassaladora é capaz de desatar.  

Assim, “Aftersun” vai se formando e nos capturando aos poucos, como aquela polaroid que guarda muito mais do que a imagem de duas pessoas. Um filme ao mesmo tempo sobre amadurecimento e sobre maturidade, que expõe o fracasso de se tentar reconstituir o passado para se compreender o presente, algo que já foi evidenciado, inclusive, pelos mais atormentados narradores. Resta, então, a última dança... isso até quando a memória – e o tempo que a corrói – permitirem.


Super Vale Ver!



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