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'John Wick 4: Baba Yaga' : filme fetichiza a violência sem cair na vulgaridade de ser unilateral | 2023

NOTA 9.0

Assim é a vida

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

Os empresários e produtores de cinema descobriram, décadas atrás, que o público geral tem uma inclinação latente ao sadismo. Um dos diretores que melhor entendeu tal conceito foi Quentin Tarantino, que direcionou essa propensão e deu a ela uma utilidade social, criando em seus filmes uma vertente curiosa que chamo de "violência satisfatória". Em sua filmografia vemos nazistas e escravistas (além de outros vilões e afins) sendo punidos em favorecimento de uma correção e/ou compensação histórica, mesmo que de forma breve e ilusória, refletindo a vontade que a maioria tem de ver essas pessoas sendo castigadas por seus crimes. Não sejamos hipócritas, a violência nos filmes é muito bem-vinda quando se trata de ver os caras maus se dando mal. Só que, como bem sabemos, uma mesma história pode mudar drasticamente sua proposta de acordo com quem a conta.

O ponto de vista é fundamental em toda e qualquer narrativa, e é exatamente o que transforma Roy, por exemplo, no vilão de 'Blade Runner: O Caçador de Andróides' (1982). Se a crônica tivesse sido apresentada por seu ponto de vista e ele fosse colocado no posto de protagonista, certamente seria um dos maiores e mais memoráveis heróis da história do cinema - mas não foi o que aconteceu, pelo menos não imediatamente. Hoje Roy é o personagem mais estudado do clássico dirigido por Ridley Scott, e muitos fãs questionam se suas motivações, no fim das contas, não seriam as mais justas. E é aí que entra o quarto filme da franquia 'John Wick', justamente por entender e agregar a plenitude dessa ideia de dualidade em sua estrutura narrativa com uma eficiência ímpar, e colocar na mesa três antagonistas que assumidamente são, cada um ao seu modo, heróis da própria história.

No novo filme, dirigido novamente por Chad Stahelski, a dinâmica entre os combatentes possui um entrosamento tão forte que acaba sendo perfeitamente cabível ao público torcer pelos três assassinos que protagonizam os principais embates do filme, mesmo enquanto eles se digladiam entre si. Existe um apego crescente com essas figuras distintas, unidas por habilidades em comum que são exploradas pela Alta Cúpula enquanto um jogo de marionetes se desenvolve personificado na figura do marquês interpretado por Bill Skarsgård. Há espaço nas quase três horas de duração para efetivar um desenvolvimento coerente para cada arco, e não é motivo de assombro se flagrar temendo a morte de qualquer um deles, mesmo sendo esse o objetivo do jogo de gato e rato que eles desempenham. Poucos filmes conseguem criar esse clima amistoso entre oponentes, ainda mais com tanta qualidade estética e narrativa. A violência dessa vez é, mais do que nos filmes anteriores, utilizada como um adereço fetichista às tais inclinações sádicas de que falei ainda há pouco - e isso não é um problema, não; pelo contrário, é o que torna o filme excelente naquilo que se propõe a ser: uma visão plural acerca de três homens em conflito, tal qual ao filme icônico de Sergio Leoni - realizador este que, inclusive, é bastante acenado em algumas passagens inspiradas da ação frenética dos combates, onde pontos de vista distintos rendem motivações plausíveis e abraçáveis.

Corajoso e eufórico, o novo capítulo da atribulada vida de John Wick se rende ao próprio absurdo e faz dele uma salada de estilos de luta muito bem coreografadas, mas, principalmente, de jornadas mundanas. Como bem diz o Marquês, existem três tipos de homens: os que têm algo pelo que viver, os que têm algo pelo que morrer, e os que têm algo pelo que matar. Nesse contexto, chega a ser poética a referência à execução de Ned Kelly, cujas últimas palavras foram uma aceitação cabal daquilo que a vida é - e a morte de Lance Reddick (intérprete do concierge Charon) uma semana antes do lançamento global do filme se torna até mesmo uma ironia quando pensamos que é justamente a morte que dá sentido à vida, e as palavras de Kelly, "assim é a vida", tenham sido ditas por seu personagem quase que como uma despedida. No fim, 'John Wick 4: Baba Yaga' é um espetáculo violento onde não há espaço para vulgaridades que banalizam ou diminuem o sofrimento que é existir.

Seguindo a linha de Schopenhauer e tendo consciência de que "viver é sofrer", percebe-se nesse novo filme um encaminhamento à apreciação de si mesmo como reduto onde a paz pode renascer - e a busca de John Wick por sua paz interior é um interessante objeto de estudo aqui, onde mais uma vez propósitos maiores conduzem sua existência desventurada e repleta de desgraças. A vingança, no fechar das contas, acaba sendo um caminho para a liberdade ou uma consumação da própria sentença, mas isso é um caso a ser interpretado na individualidade. Fato inquestionável é que o bicho-papão sempre volta, e sua fome é insaciável.  






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