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'A Noite do Dia 12': instigante policial francês questiona o olhar inquisidor sobre a liberdade feminina | 2023

NOTA 8.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme

“Há casos que assombram policiais por uma vida inteira. Acho que esse é o meu.”

Segundo uma matéria da jornalista Joseane Pereira, publicada pelo portal UOL em 2019, a má-fama dos gatos pretos é oriunda da Idade Média, quando tais animais eram costumeiramente relacionados às mulheres consideradas bruxas, pois os felinos, ainda de acordo com a teoria medieval, receberiam suas almas para passeios noturnos. Além do inequívoco caráter curioso que carrega, esse dado, aliado à referência ao célebre conto de Edgar Allan Poe, ajuda a compor algo bem mais profundo ao se perceber a presença desses animais no decorrer da trama de “A Noite do Dia 12”, longa de Dominik Moll que se coloca como um exemplar fora da curva nessa onda de filmes policiais derivados de casos reais.

Na fatídica noite referida pelo título, Clara Royer (Lula Cotton-Frapier) é atacada por um lunático que a incendeia viva logo após a moça ter saído da casa de uma amiga. Quase que concomitantemente, o capitão Yohan Vivès (Bastien Bouillo) assume o comando da delegacia que ficaria à frente do caso que a vitimou. A partir daí, o roteiro escrito por Gilles Marchand e pelo próprio diretor vai caminhar na contramão do que seria uma trama investigativa convencional. Não que os procedimentos típicos das narrativas policiais não estejam presentes. Só que eles agora servem como mote para instigantes discussões que se apresentam em duas vertentes: uma comportamental, ligada ao choque entre uma tropa de detetives homens e a forma desapegada com a qual Clara condizia seus relacionamentos; e uma outra referente à tradição das histórias policiais que, não raro, estruturam-se com base no conceito de “crime passional”.  Ora, como estabelecer parâmetros e linhas de ação se o objeto de investigação não se encaixa nos moldes pré-estabelecidos pela sociedade patriarcal? “Somos amigos sexuais”, diz um dos muitos suspeitos. Assim, Clara se torna a esfinge a ser decifrada por homens de diferentes gerações, sobretudo a dupla formada por Yohan e pelo experiente Marceau (um ótimo Bouli Lanners) que, além de fazer menção à Joana D’arc em dado momento, solta o seguinte petardo: “Para estar com alguém, eu preciso sentir algo.”

Nesse aspecto, os relacionamentos vividos por Clara vão ao encontro das teorias criadas pelo filósofo Zygmunt Bauman no célebre livro “A Modernidade Líquida”, lançado em 1999. De acordo com o pensador polonês, essa liquidez metafórica representaria a fluidez pautada na superficialidade e na fragilidade das trocas afetivas/sexuais, algo fruto do processo de individualização egocêntrica e da mercantilização das relações sociais nas últimas décadas.  E aqui entra um “detalhe” muito bem observado por Moll: de certa forma, essa mobilidade sempre foi aceita como modus operandi masculino. Agora, quando ela se apresenta na sua plenitude nas escolhas feitas por uma jovem mulher e num período histórico em que noções como “ciúme” e “sentimento de posse” soam ultrapassadas, o curto-circuito acontece.  

Em seu desafio aos padrões do gênero no qual se insere, é fácil criar paralelos entre “A Noite do Dia 12” e outra grande obra cinematográfica: “Zodíaco”. Contudo, o que mais chama a atenção é um fator que os diferencia: a claridade. Se no monumento dirigido por David Fincher – a exemplo do que já havia em outra joia, “Seven” – a fotografia apostava em muitas cenas noturnas, aqui elas praticamente inexistem. Numa condução quase eastwoodiana, Moll parece estar bem mais interessado em fazer um contraponto à escuridão da chamada Idade das Trevas, período no qual mulheres ardiam simplesmente por desafiarem a ordem masculina vigente, ao momento atual, paradoxalmente rutilante tamanha a quantidade de avanços científicos, mas ainda retrógrado em diversos aspectos.  

Assim, banhado pela luminosidade de um nome que nubla a mente dos detetives que deveriam jogar luz sobre um assassino, “A Noite do Dia 12” só peca ao martelar demais sua mensagem em diálogos expositivos que, infelizmente, aumentam com o que deveria ser um bem-vindo surgimento de outras mulheres com maior destaque naquela caçada. Um crime leve, que não tira este projeto vencedor de seis Césares da cela especial que é a lista de melhores filmes policiais dos últimos anos.





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