'Alma Viva' : feminista, longa trata da conexão espiritual que transcende a morte | 2023
NOTA 7.5
Por Karina Massud @cinemassud
Elas cochicham, riem à toa, dançam funk e compartilham de gostosas refeições durante as férias. Todo verão a menina Salomé, filha de emigrantes portugueses que vivem na França, vai pro vilarejo da sua família em Trás-os-Montes, nordeste de Portugal, e lá ela e sua amada avó e companheira desfrutam de lindos momentos juntas, alimentando elos que só elas compreendem, inclusive o da mediunidade. A avó então morre repentinamente, e enquanto a neta enfrenta o luto, o restante da família briga por dinheiro ainda diante do corpo no velório.
A morte da matriarca faz aflorar os mais diversos sentimentos na família: tristeza profunda, mágoas não resolvidas, ódio e mesquinhez; eles passam a duelar entre si e com os moradores provincianos do lugar, até com a vizinha que é desafeto antigo da falecida. No caso de Salomé, surgem o inconformismo e a espiritualidade, o que leva todos a acreditarem que ela tem o “corpo aberto” como a falecida e, segundo uma superstição, ela encarnou a senhora ao vestir sua roupa, daí seu comportamento estranho tido como sobrenatural. Esse vínculo entre Salomé e sua avó (que na história não tem nome) e suas consequências são o fio condutor do belo drama português “Alma Viva”.
Egressa de produções em curta-metragem, a diretora luso-francesa Cristèle Alvez Meira faz sua estreia em longas com “Alma Viva”, ficção com base autobiográfica que traz experiências que marcaram sua adolescência e que ela rascunha desde então, numa forma de relembrá-las e de exorcizar os fantasmas daquela época.
A riqueza das tradições portuguesas são evocadas no ambiente familiar onde se passa a trama através das rezas, cânticos, chás curativos, dos peixes que vem do mar que banha a vila, e até dos exageros que existem em lugares que preservam hábitos antigos. Há um toque de realismo fantástico trazido pelos incêndios florestais, pelo cachorro que vagueia nas sombras atrás de Salomé e pelo massacre das galinhas. A trama é pontuada por esses mistérios que a diretora deixa sem soluções, preservando assim a dúvida: estaria Salomé possuída pela avó ou apenas influenciada pelas crenças ancestrais que preservam as memórias dos seus mortos?
O elenco mistura atores reais e não-atores moradores da vila, tornando o drama familiar ainda mais realista. Lua Michel (filha da diretora Cristèle Alves Meira) está ótima como a protagonista que, mesmo com 6 anos, já se mostra independente, forte e com personalidade, o que já a faz vítima do machismo estrutural, que acusa mulheres donas de si de “bruxas”. Ela nos leva por essa tocante jornada de luto através do seu olhar ingênuo e curioso sobre a vida e a complexidade das relações entre adultos.
“Alma Viva” foi destaque no Festival de Cannes de 2022 e foi candidato a representar Portugal no Oscar 2023 na categoria de Melhor Filme Internacional. Um longa que é um belo retrato de conexões de alma que só o amor explica.
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