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'Oppenheimer' : Christopher Nolan pondera sobre as inquietudes e tormentos de um gênio injustiçado | 2023

NOTA 9.0 

O poder fica nas sombras

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

Pingos de chuva. Gotas pequenas, gotículas, que causam distorções e se reverberam em ondas quando atingem a superfície de um lago ou de uma poça d'água - como um lembrete da natureza de que existe uma reação para cada ação, em uma metáfora invólucra para as relações de causalidade. É com esse olhar poético - e profético - que 'Oppenheimer' se abre, seguindo a expressão estarrecida no rosto do personagem-título enquanto ele se dá conta do impacto de sua obra para a história mundial.

Christopher Nolan, que dirige e escreve aqui sua primeira cinebiografia, entende muito bem a personalidade que foi J. Robert Oppenheimer em todas as suas faces - e de igual maneira apresenta também uma percepção apurada sobre as maquinações políticas que assolaram o seu entorno, principalmente no período pós-Trinity. Com dois vieses históricos para discutir, Nolan divide seu filme de três horas em duas partes: uma corrida de exploração científica e uma trama política absurdamente egóica. Plenamente ciente do excesso de personagens do filme e da complexidade atenuada de seu enredo, Nolan emprega uma montagem prática e eficiente, que recorre a lembretes visuais para identificar tantos indivíduos aos quais não estamos familiarizados através de brevíssimos flashbacks. 

Ao contrário do que se esperava de um filme desse tipo, existe também a presença de um vilão a ser revelado (ou antagonista, se preferir). Com arcos divididos entre cenas coloridas e em preto & branco, para facilitar a compreensão do público quanto ao período e ao ponto de vista abordado, Nolan desenvolveu um roteiro coeso e ousado, colocando as cenas protagonizadas por Robert Oppenheimer com uma escrita em primeira pessoa, e as em preto & branco de modo convencional. A fotografia equilibra com maestria o balanço de cores, e o design de produção manifesta o fetiche admirável (e majestoso) do diretor em impor efeitos práticos acima de qualquer computação gráfica na pós-produção - tanto é que, segundo Nolan, este filme não contém uma única cena sequer de efeitos visuais digitais.

Ainda exaltando a parte técnica, deve-se destacar a trilha sonora composta por Ludwig Göransson, vencedor do Oscar por seu excelente trabalho em 'Pantera Negra' (2018), que cresce e se manifesta com os chiados de um leitor Geiger em momentos oportunos e reflete as inquietações físicas, morais e emocionais de Oppenheimer. Através de façanhas técnicas que beiram o impecável, Nolan incorpora um caráter vingador para fazer justiça histórica com o físico teórico que aqui se personifica através da interpretação brilhante de Cillian Murphy. O elenco coadjuvante, onde se destacam Robert Downey Jr., Emily Blunt, Florence Pugh e Matt Damon, também é escolhido a dedo e tem seu brilho sempre bem distribuído. Em suma, é uma jornada intelectual e emocional bastante intensa e, com o perdão do trocadilho, bombástica. É uma leitura interessante sobre responsabilidade e culpa, mas principalmente sobre humanidade e ambição.

Pingos de chuva. Gotas que caem do céu. Bombas, na verdade. Bombas que caem sem aviso, e de igual maneira manifestam ondas de choque que perturbam a calmaria inerte da superfície. Observando em um plano bem mais amplo e aberto ao final do filme, toda a Terra se torna um lago e as gotas de aço que caem do céu transformam a paisagem azul no vermelho vivo do fogo que consome tudo sem fazer distinções. Em seu último minuto, Nolan distorce aquilo que já havia desconstruído nas três horas anteriores acerca do mito Oppenheimer para dissecar os demônios do homem consumido pelo terror de sua própria criação, com uma ênfase lírica e terrivelmente atual sobre as guerras que nos consomem cotidianamente - seja em escala global, seja em escala pessoal. 'Oppenheimer' é um filme íntimo e aterrador, e ainda assim continua como um retrato histórico coletivo onde monstros se travestem de cordeiros e o futuro é escrito com sangue. É belo e tragicamente reflexivo. Eufórico e intrinsecamente triste. Intenso mesmo que aparentemente parado. É o cinema de Nolan em sua melhor forma.






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