'Fogo Fátuo': longa acende a chama do desejo que se alastra por corpos e tradições portuguesas | 2023
NOTA 8.0
“Real é o caralho!”
Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme
Já no prólogo de “Fogo Fátuo” é possível encontrar um paradoxo que diz muito sobre o cinema de seu realizador, o português João Pedro Rodrigues. O ano é 2060 e adentramos no quarto onde convalesce o rei Alfredo (Joel Branco), enquanto o neto brinca com carrinho de bombeiros a seus pés. Inescapável à atenção do espectador, um enorme quadro no qual uma família negra aparece posando com vestes monárquicas exibe um membro cuja mestiçagem é flagrante, fora que também se faz notório o pequeno boneco a pilotar a viatura em miniatura trazida pelo garoto. Tais enquadramentos, além de evocarem memórias adormecidas, ajudam a compor uma crítica, pelo caminho da subversão que é tão caro a João, às heranças de um regime político que vigorou no país por quase mil anos, baseado quase que exclusivamente na exploração do trabalho escravo, e que foi superado, em tese, em 1910.
O anacronismo e a teatralidade são algumas das principais marcas dessa “fantasia musical” realizada pelo autor de obras como “O Fantasma” e “O Ornitólogo”. Vemos as vestes e os objetos que remetem a um passado que insiste em não morrer juntarem-se a elementos de um presente ainda preocupante, haja visto a forma como o roteiro trabalha as ondas de incêndios que se alastram pelo solo lusitano: “Achas que alguém respeita o Acordo de Paris?!”, indaga o agora jovem príncipe vivido por Mauro Costa. Além disso, não é raro termos personagens quebrando a quarta parede, com um olhar quase inquisidor, ou até mesmo cerrando as “cortinas” daquele palco onde se encenam aparências que tendem a virar fuligem quando o herdeiro do trono decide alistar-se como soldado no corpo de bombeiros.
A partir da incursão de Alfredo na corporação, auxiliado pelas cores saturadas presentes na fotografia de Rui Poças, o cineasta fará arder um fogo inclemente, irrefreável, que não observa a raça ou a etnia dos corpos que consome: o desejo. Ao conhecer Afonso (André Cabral), Alfredo se entregará a uma chama que os anos não apagarão. É dentro do quartel também que será colocada em xeque a rigidez – não aquela, claro – das instituições ainda vigentes em Portugal. O balé dos soldados nus, as brincadeiras envolvendo reproduções vivas de famosas obras de arte, ou até mesmo o clichê das descidas no mastro formam um conjunto de ressignificações daquilo que se pode chamar de tradicional ou histórico.
Sem jamais fechar os olhos para devastações contemporâneas como a pandemia do novo coronavírus, “Fogo Fátuo” é a centelha que propõe uma fogueira para incinerar aquela velha mobília manchada por séculos de impunidade e os documentos arcaicos que outrora determinavam regras e líderes. Seu irônico e catártico final reposiciona, mesmo que utopicamente, pessoas que ainda sofrem com as labaredas retrógradas que insistem em se alimentar de grupos que servem de combustível para a manutenção de privilégios segregadores. Ao menos, para João Pedro Rodrigues, é rei morto... rei posto!
Na contramão do descaso com os prestadores de serviço pertencentes às classes mais pobres, uma das muitas heranças de um persistente colonialismo, “Fantasma Neon”, curta que será oportunamente exibido em conjunto com “Fogo Fátuo”, entrega ao espectador um criativo manifesto artístico sobre as condições indignas encaradas pelos entregadores por aplicativo. O projeto, cujo título paradoxal já aponta para uma invisibilidade gritante, mistura sua denúncia a uma estética pouco usual, na qual números musicais e cores vivas rompem uma dura realidade sem jamais dissimularem os dramas vividos por quem se arrisca pelas ruas das grandes cidades sem qualquer segurança ou reconhecimento. Da quebra da quarta parede às entrevistas que colocam, curiosamente, os entregadores como espectros no extracampo, o diretor Leonardo Martinelli é muito eficaz na sua proposta de fugir das lombadas do óbvio num lindo trabalho que mereceria cinco estrelas em qualquer App.
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