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'Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois' : homenagem a clássico português, longa percorre uma Lisboa sob o espectro da Covid-19 | 2023

NOTA 7.5

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme 


O projeto “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois” surge de uma ideia inusitada: um retorno quase quadro a quadro a “Os Verdes Anos”, um dos maiores clássicos do cinema português, lançado em 1963. E o que já poderia render, seis décadas depois, uma nova (e interessante) crônica acerca de uma Lisboa em transformação, acaba ganhando um ingrediente a mais no seu processo de elaboração: a pandemia de Covid-19.

Numa breve contextualização, é fundamental dizer que o longa de estreia de Paulo Rocha, à luz da onda cinemanovista europeia, trazia a capital lusitana como cenário para o encontro (termo muito importante) entre Júlio, um jovem provinciano em busca de oportunidades na cidade, e a empregada doméstica Ida. E está justamente na forma como o espaço urbano serve de moldura para as relações humanas a maior diferença trazida pelo documentário de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata.

Se em “Os Verdes Anos” havia uma vivacidade urbana pulsante, retratada em cenas de trabalho e lazer repletas de pessoas, agora o vazio provocado pelo surto global do novo coronavírus reconfigura a dinâmica social e seus ambientes. Por exemplo, num dos poucos momentos em que alguém aparece inteiro e mais próximo da câmera de Rui Poças (colaborador costumaz de João Pedro) e Lisa Persson, um homem tenta abrir sem usar as mãos uma porta, resultando numa identificação imediata com situações inusitadas experimentadas por todos nós.   

Nessa geografia da solidão compartilhada, os enquadramentos trazem, na maior parte do tempo, resquícios de habitação. Ruídos, vozes, figuras escanteadas ou que cruzam o quadro rapidamente formam uma atmosfera espectral na qual todos parecem aprisionados – não por acaso, janelas e grades são elementos constantes -, como se fossem impedidos por uma força maior de aparecer naqueles lugares.

Contudo, o que há de mais irônico na obra é o fato de, com o tempo de projeção, a nossa busca angustiada por pessoas (contando, inclusive, com movimentos bruscos de câmera que praticamente “caçam” a quem enquadrar) dar lugar a uma inesperada sensação de pura contemplação. Assim, aquele frenesi mimetizado pelo filme dos anos 1960 é poeticamente substituído por planos de ruas desertas, parques, insetos e uma gama variada de elementos considerados insignificantes ou “desimportâncias”, como diria o sempre sábio Manoel de Barros, que ficam eclipsadas pelo turbilhão engolidor de sensibilidades chamada metrópole.

Temos, portanto, a estrear lamentavelmente em circuito restrito, um título desafiador, cuja proposta bem fora dos padrões reafirma João Pedro Rodrigues (também em cartaz com outro belo desvio da norma: “Fogo Fátuo”) como um dos realizadores mais instigantes do cinema contemporâneo.  






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