'Retratos Fantasmas' : um mergulho nas lembranças de um cineasta e nas memórias de uma cidade fantasma | 2023
NOTA 10
“Filmes de ficção são os melhores documentários”
Por Rafa Ferraz @issonãoéumacrítica
O cinema de Kleber Mendonça Filho sempre foi muito pessoal. É verdade que de alguma forma qualquer manifestação artística dialoga internamente com seu autor, porém, no que se refere ao cineasta brasileiro, esse diálogo aparenta ser mais frontal e direto. Se considerarmos os três filmes de maior visibilidade, “O Som ao Redor” (2012), “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2019), o panorama geral possui uma unidade de discurso e um traço autoral bastante nítido. Em “Retratos Fantasmas”, que chega amanhã no circuito, o diretor entrega seu projeto mais íntimo e particular.
O longa tem início com um convite. O cineasta literalmente abre as portas da casa onde passou uma importante parte da vida, quando ainda jovem fez suas primeiras experiências com a câmera. Em tom poético, o documentário narra casos tão pessoais que em pouquíssimo tempo de projeção já é possível estabelecer uma relação de proximidade e intimidade. Por vezes Kleber adota um tom melancólico, porém ele já havia mostrado excelente timing cômico nas produções anteriores e aqui utiliza bem essa habilidade para vez ou outra suavizar o clima.
Ao fim da primeira parte, cada canto da casa parece familiar e uma vez já investidos de maneira afetiva na narrativa, somos convidados a sair para um passeio nos arredores. O bairro de Setúbal é um velho conhecido dos já iniciados na obra de KMF, e antes de ir ao centro da cidade, passamos brevemente por suas ruas e casas com a mesma fluência com que percorríamos os corredores do apartamento momentos antes. Já na parte central de Recife somos apresentados a outro fator imprescindível para a formação do diretor e não só do ponto de vista artístico, mas também enquanto observador atento das mudanças históricas e sociais. O trabalho de pesquisa é primoroso, o que resultou em um levantamento rico em imagens de arquivo e documentos oficiais de fontes primárias, além de um vasto acervo pessoal. O foco nesse momento está nos cinemas de rua de Recife e tendo eles como ponto de partida, conhecemos a relevância daqueles locais para o cotidiano da população e também para a política local. Fotografias dessas construções com todo seu esplendor são sobrepostas por imagens atuais, quase todas reduzidas a ruínas. Em um momento particularmente emotivo, conhecemos o Sr. Alexandre, projecionista do extinto Cine Art Palácio que até o fim conduziu seu trabalho com grande afinco e, segundo suas próprias palavras, fechou as portas com chave de lágrimas.
A trajetória de Mendonça Filho é marcada por diversas quebras de paradigmas e não é exagero dizer que na década anterior a pandemia, foi o autor brasileiro de maior relevância a nível mundial. “O Som ao Redor” está entre os 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, segundo a ABRACCINE, “Aquarius” teve seu lançamento em Cannes, assim como “Bacurau”, que por sua vez conquistou o prêmio do júri nesse mesmo festival e se tornou um verdadeiro fenômeno de público e crítica. Documentários não costumam ter o mesmo apelo da ficção, em especial do ponto de vista comercial. Prova disso é a dificuldade na distribuição deles nas salas de cinema. O último do gênero a fazer sucesso, “Democracia em Vertigem” (2019) ganhou projeção graças ao streaming. Se há uma pessoa capaz de quebrar mais essa barreira, ajudando a superar essa mentalidade ultrapassada, esse alguém é Kleber Mendonça Filho.
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