'A Noite das Bruxas': suspense investigativo imprime elementos sobrenaturais na obra de Agatha Christie | 2023
NOTA 9.0
Histórias medonhas deixam a vida menos medonha
Por VinÃcius Martins @cinemarcante
Quando se pensa em adaptações, espera-se que haja fidelidade ao material base que está sendo transcrito a uma nova mÃdia. Contudo, o próprio termo "adaptação" abre margem para que liberdades artÃsticas sejam tomadas e novas visões sejam criadas - e isso é ao mesmo tempo algo muito bom e muito ruim, estando sempre a depender do resultado final e da recepção do público. No caso de 'A Noite das Bruxas', que traz de volta ao cinema a versão de Kenneth Branagh para o icônico personagem criado por Agatha Christie, as opiniões tendem a ser polarizadas; uns hão de condenar a obra como uma blasfêmia à memória de Agatha, e outros hão de abraçar a ideia de que mÃdias diferentes permitem expressões diferentes, e com isso embarcarão na proposta. Eu, de modo geral, sempre defendo a importância da permissibilidade à visão do realizador (que aqui dirige, produz e estrela o filme), mas me resguardo à minha própria liberdade de gostar ou não do que for proposto, sempre aguardando o fim da exibição para consumar minha opinião. No caso do filme da vez, assumo meu apreço à quilo que Branagh tem feito com esse universo investigativo tão rico e fantástico, e mesmo questionando algumas de suas escolhas ainda dou credibilidade à elas devido ao simples fato de serem funcionais.
Depois de 'Assassinato no Expresso do Oriente' (2017) e 'Morte no Nilo' (2022), o detetive Hercule Poirot (Branagh) decide se aposentar e se retirar em Veneza, quando recebe um convite para participar de um suposto ritual espÃrita para fins de confortar uma mãe enlutada e, com isso, contestar se os métodos são pura falcatrua ou se o plano espiritual existe de fato. Ocorre que, por um infortúnio da vida, uma tempestade se acomete e todos ficam presos no casarão, e começam a acontecer assassinatos aparentemente inexplicáveis - que colocam até mesmo Poirot em dúvida sobre suas crenças e a própria sanidade. É uma premissa e tanto, deve-se assumir, mas tudo isso é muito diferente daquilo que Agatha Christie compôs em suas narrativas originais. A proposta de Branagh e do roteirista Michael Green (que escreveu também 'Blade Runner 2049' lançado em 2017) é trazer abordagens diferentes para cada filme dessa cinessérie investigativa. No primeiro houve um trabalho interrogativo mais tradicional, no segundo a tal morte que acontece no Nilo só ocorre lá pelas tantas do filme, com as pistas sendo espalhadas preliminarmente ao momento fatÃdico, e neste terceiro o que é inserido é um contexto sobrenatural onde o foco da vez não são os assassinatos, mas sim o mistério quanto à dubiedade acerca do contato espiritual. Em suma, o foco está mais no ceticismo e na dúvida do que na certeza das mortes.
Contudo, este não é um mistério que exige tanto do público, até porque não há uma trilha muito extensa de pistas a ser seguida. Há também a tentativa tropeçada de emular um filme de terror, o que torna algumas passagens bastante previsÃveis; mas o produto final, no entanto, tem seu devido crédito porque a confusão mental de Poirot é bem estabelecida e existe um charme gótico bem atraente na ambientação criada aqui - e além do mais, a inclinação ao terror não passa de um apêndice. Com um cenário real que contrasta bastante com as tomadas em chroma key que 'Morte no Nilo' teve (em grande parte por conta da pandemia e, por causa dela, sendo gravado majoritariamente em estúdio), a locação da vez permite um trabalho interessante de texturas e sombras que são a cereja do bolo enquanto o ótimo trabalho de som imprime uma alusão crescente à paranoia. Com nomes como o de Tina Fey e Michelle Yeoh, o elenco é uma constelação e tanto - dessa vez sem nenhuma grande polêmica como as de Johnny Depp, Letitia Wright e Armie Hammer, então ninguém rouba a cena com manchetes extra-filme e os holofotes permanecem sobre o Poirot de Branagh. Desse modo, concluo dizendo que mesmo aos que acharem o filme uma profanação terrÃvel ao livro, fica o lembrete dado pelo próprio filme: Histórias medonhas deixam a vida menos medonha. Isso vale para tudo.
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