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'Assassinos da Lua das Flores' : novo filme de Martin Scorsese faz da inocência a mácula dos injustiçados | 2023

NOTA 8.0

A tempestade é poderosa

Por Vinícius Martins @cinemarcante 


Muito se fala hoje em dia sobre um conceito chamado "justiça histórica", onde se promove uma compensação por danos causados à antepassados e que, por consequência, afetaram seus descentes e os prejudicaram em sua cadência natural. Quando se fala em povos originários, esse conceito se manifesta de forma mais ferrenha e incisiva, mas na prática nada muda efetivamente. E é aí que entra a arte - mais precisamente a sétima - como uma ferramenta que, nas mãos de diretores competentes como Martin Scorsese, faz o debate ganhar contornos e expressões que carregam potencial suficiente para remodelar o senso comum ou, no mínimo, gerar algum incômodo justamente por direcionar luz a uma mazela do passado, para que sejam reconhecidos erros e crimes e algo enfim possa ser reparado ou aprendido a partir disso. Dessa vez, a cicatriz que volta a abrir é a do povo Osage, que foi vítima de uma das mais sangrentas e covardes conspirações da história estadunidense e que agora ganha os holofotes em um filme que critica a ambição desmedida e é produzido, olhe só!, pela Apple.

A leitura histórica que o roteiro de Scorsese e Eric Roth promove é eficiente (e parcialmente questionável) ao montar a estrutura em torno da ambição do povo branco e dos crimes cometidos por ele contra os nativos Osage, que ficaram multimilionários após a descoberta de petróleo em suas terras e, por isso, se tornaram alvos de golpes legalizados que se consumaram através de laços matrimoniais e mortes misteriosas que favoreciam os cônjuges herdeiros. Em uma mescla inusitada de gêneros que se alternam no decorrer da exibição, percebe-se que mesmo apesar das quase 3h30 de duração que 'Assassinos da Lua das Flores' possui, existe um dinamismo conciso devido ao domínio do diretor e, por isso, o tempo não é sentido com pesar ou fadiga; contudo, por mais contraditório que possa parecer, a impressão que fica ao final é que sobra conteúdo e falta tempo enquanto, paralelamente, o filme poderia ter sido menor. Mesmo com uma qualidade absurda, há de se reconhecer que a trama não demanda um grau considerável de maturação como o excelente 'Drive My Car' para ser devidamente apreciada, e alguns trechos poderiam ter sido limados.

Ocorre que a trama se direciona para muitos lados sem se firmar efetivamente na maioria deles - e não questiono a escolha de elipsar a criação do FBI, uma vez que o foco não é esse; mas questiono que o povo Osage se torne coadjuvante de sua própria história. Ao adotar uma postura de justificativa aos assassinatos (que pode ser interpretada equivocadamente como uma imputação de culpa aos Osage), o filme corre o risco de responsabilizar os nativos pela própria desgraça quando na verdade a intenção do diretor é colocar a inocência daquele povo como seu pecado mortal e condenar o homem branco por mais esse massacre. Afinal, uma comunidade que nunca esteve habituada a lidar com dinheiro e do nada passa a ter uma fortuna colossal não estava preparada para lidar com a ambição dos brancos e seus métodos desonrosos. Por isso, a impressão que me ficou foi que havia muito mais a ser mostrado sobre o povo Osage e o luto constante que pairava sobre eles, mas o filme insistiu em ser mais sobre homens brancos perversos do que sobre a cultura vermelha ou sobre a tal reparação histórica. Todavia, isso não torna o filme desrespeitoso ou historicamente fútil.

Scorsese é extremamente empático e cuidadoso ao abordar as dores dos Osage mesmo sem aprofundá-las, e conclui o filme, em suas últimas palavras, assumindo um tom explicitamente pessoal quanto à sua visão acerca daqueles crimes ocorridos um século atrás. Seu respeito evita que o filme caia em um penhasco de estigmas, e por fim o povo Osage é presenteado com uma abordagem que perpetua nomes que sofreram injustiças para que o mundo saiba que eles existiram. O filme é uma peça de arte, com um zelo técnico brilhante e uma trilha sonora pulsante (trabalho de Robbie Robertson, falecido em agosto de 2023) e uma montagem afiada feita pela sempre excelente Thelma Schoonmaker. As atuações de Leonardo DiCaprio e Robert De Niro são magistrais, mas não maiores do que a interpretação de minúcias que Lily Gladstone entregou e que deve lhe render no mínimo uma indicação ao Oscar. Exprimindo compaixão aos nativos e condenando seus malfeitores, o filme é muito bom na maioria de seus aspectos, mas faltou uma necessária conexão narrativa e emocional com o público. Faltou o silêncio intimista para contemplar a tempestade. Mas ainda assim, um grande filme.





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