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Festival do Rio: 'A Paixão Segundo G.H.' | 2023

A Magia de Clarice Lispector por Luiz Fernando Carvalho 

Por Rafa Ferraz @issonãoéumacrítica 


O cinema, em sua origem, absorveu influências de diversas formas de arte, notadamente o teatro e a literatura. Mesmo após alcançar o status de uma “arte autônoma” e desenvolver sua própria voz, o processo de adaptação cinematográfica continua a ser alvo de controvérsia, muitas vezes acompanhado de ceticismo e, por vezes, de julgamento. Comentários como "o livro é melhor que o filme" são comuns, mas é importante reconhecer que o filme não está vinculado à fidelidade textual. Cada adaptação é um processo único, seguindo caminhos diversos e não suscetíveis a comparações diretas. São obras que, apesar de suas semelhanças, possuem autores diferentes.  Luiz Fernando Carvalho, diretor aclamado por 'Lavoura Arcaica', empreende mais uma incursão na literatura nacional com um projeto audacioso: trazer para as telas ninguém menos que Clarice Lispector. Assim como na escrita instintiva e profundamente reflexiva - alguns diriam, destrutiva em certo sentido - da autora, Carvalho adentra um intrigante terreno por meio de uma experiência audiovisual que ousa explorar destemidamente os recantos mais sombrios da natureza humana. Através de sons e imagens envolventes, ele nos guia em uma jornada lisérgica e mágica pelo universo clariciano. 

Nascida na Ucrânia, Clarice Lispector desembarcou no Brasil com apenas dois meses de vida, estabelecendo-se inicialmente em Maceió, onde passou seus primeiros anos. Mais tarde, na idade adulta, mudou-se para o Rio de Janeiro e, após casar-se, viveu em diversos outros países. Este breve histórico parece aleatório, contudo, está profundamente entrelaçado com sua escrita, que frequentemente explora personagens que estão um tanto deslocados e em busca de pertencimento. Essa temática ressoa em 'A Paixão Segundo G.H.', agora adaptada para o cinema, oferecendo imagens e sensações que capturam com maestria essa busca interna de G.H.. A escolha dos enquadramentos, repletos de planos fechados, refletem bem o 'foco microscópico' característico da autora. Tudo é visto de muito perto, desde objetos até a figura deslumbrante de Maria Fernanda Cândido. 

A trama se desenrola em uma única locação, o apartamento de G.H., porém é no quarto de empregada que o clímax acontece. Uma constante na obra da autora é o confronto do sujeito de maneira completamente imprevisível. Quando personagens se distraem ou acham que têm tudo sob controle, seja em um simples encontro no ponto de ônibus, um tranquilo passeio no parque ou uma barata no armário. Nessa sequência tão conhecida, adentramos no campo do simbólico. No entanto, é nesse momento que o fluxo de consciência não apenas se intensifica, como também acelera. As dimensões temporais do cinema e da literatura são distintas, pois na leitura, o ritmo é algo profundamente pessoal, ao passo que no audiovisual, a montagem e a edição ditam o compasso. As passagens de Clarice exigem uma certa maturação, e nesse “horrível mal-estar feliz”, suas palavras ressoam em solo inexplorado. Entretanto, indiscutivelmente, Luiz Fernando Carvalho nos convida, antes de tudo, a sentir. Mesmo que essa obra possa parecer restritiva, não é necessário compreendê-la profundamente para apreciá-la. 

Antes de iniciar seu romance, Clarice adverte que ele é um livro como qualquer outro, mas expressa o desejo de que seja lido por pessoas de alma já formada. Embora a interpretação exata de suas palavras seja passível de conjectura, é evidente que a verdadeira apreciação de sua obra requer entrega. Nesse contexto, Luiz Fernando Carvalho e Maria Fernanda Cândido nos conduzem a essa “alegria difícil” que é pensar e sentir Clarice Lispector. 




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