'O Assassino' : David Fincher reafirma sua excelência em thriller frenético e intimista | 2023
NOTA 10
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Por Vinícius Martins @cinemarcante
Poucos realizadores da atualidade conseguem ser tão brilhantes quanto o diretor David Fincher na estruturação das histórias que querem contar. Quem conhece a filmografia de Fincher pode atestar isso, e quem não conhece pode descobrir agora quem é o homem por trás de filmes tão emblemáticos como 'Se7en: Os Sete Crimes Capitais' (1995) e '***** da ****' (1999) - cujas regras 1 e 2 me impedem de comentar a respeito - na matéria especial sobre suas técnicas e seu estilo audiovisual. Seu mais novo trabalho, 'O Assassino', marca um retorno às raízes que o consagraram quase trinta anos atrás, refazendo agora a parceria com o roteirista Andrew Kevin Walker, de 'Se7en', em um suspense memorável que exprime o que há de melhor em seu refinamento estético e narrativo.
Com uma dinâmica simples e objetiva, o roteiro de Walker sintetiza o protagonista e o transforma em um anti-vilão empedernido, que vai se estabelecendo já nos primeiros minutos como um reflexo dos nossos tempos enquanto justifica a própria existência e o fato de que seu ofício não muda as estatísticas do mundo. Com uma estrutura de poucos diálogos, fica incumbido ao assassino narrar seus pensamentos em monólogos extensos - e sempre relevantes - onde o roteirista Walker, através do discurso desse profissional comedido e friamente calculista, confronta o conceito de um mundo maniqueísta para trazer a realidade de assassinos de aluguel a uma escala micro, fugindo da megalomania referencial da franquia 'John Wick'. A trama aqui gira em torno do assassino interpretado por Michael Fassbender, que após um breve deslize em uma de suas missões teve sua vida íntima virada de ponta-cabeça e se viu obrigado a embarcar em uma jornada pessoal de vingança e reparação.
Com um protagonista tão metódico quanto o diretor, o filme se faz uma magistral rapsódia de autocontrole que se torna, de modo quase alegórico, um drama existencialista. Apesar disso, o roteiro se esquiva da facilidade de posicionar o assassino como um balaústre dentro do mecanismo intrincado do crime organizado e coloca nele conflitos, dilemas e fragilidades que vão se expondo ao público a cada novo momento onde sua humanidade e seu profissionalismo se põem em atrito. Suas regras enfatizadas repetidas vezes se tornam um mantra que guia o filme e simultaneamente defendem e acusam as condutas e escolhas do assassino, deixando o julgamento ao público se a carnificina proposta é ou não defensável dada a circunstância. Vemos o assassino exaltar sua disciplina e seus conhecimentos precisos, e vemos também esses mesmos conhecimentos serem postos à prova quando algo não sai como planejado. É, de certo modo, um filme sobre amadurecimento e aceitação da própria calamidade - e isso torna a tomada final tão reveladora quanto as tantas explanações dissertadas ao longo das quase duas horas de exibição.
Fincher é tão genial que consegue abstrair relevância e interesse até de uma cena onde o assassino meramente luta contra o tédio ocupacional. Suas escolhas criativas determinam a qualidade absoluta do longa e denotam seu talento nato para a construção de filmes que agregam a técnica de modo a favorecer a narrativa, onde a técnica está para a narrativa e não o contrário - o que resultaria em um exibicionismo estético vazio, como vê-se comumente em outros cineastas. Como resultado, temos aqui o melhor design de som do cinema de 2023 (trabalho de Ren Klyce) e uma edição cirurgicamente precisa pelas mãos do duas vezes vencedor do Oscar (por filmes do Fincher, a propósito) Kirk Baxter. A fotografia de Erik Messershmidt e a trilha de Trent Reznor & Atticus Ross (três nomes também vencedores do Oscar em outros filmes de Fincher) merecem destaque e devem render novas indicações na próxima temporada de premiações, junto com uma improvável (mas não impossível) nomeação a Tilda Swinton como atriz coadjuvante, uma vez que ela rouba a cena para si e entrega uma das melhores sequências do filme.
Com isso em mente, enfatizo que 'O Assassino' é uma experiência sensorial majestosa e precisa ser visto no cinema - onde entrou em cartaz duas semanas antes de sua estreia na Netflix - porque é concebido por uma mente visionária que usa todos os recursos que tem a disposição e é assertiva em cada escolha que faz na composição de suas obras - desde a paleta de cores até as músicas de background. Este é um filme que cresce após a exibição e, embora seja simples em sua ideia e até ordinário em seus miolos, com um ritmo mais lento mas absurdamente frenético, é uma obra de um pudor sem igual e reafirma a excelência de Fincher como um exímio contador de histórias. Tão importante quanto o que se conta é a maneira como é contado, e no cinema contemporâneo dificilmente se encontra alguém tão competente como David Fincher.
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