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'Incompatível com a Vida' : Eliza Capai transforma a própria dor em arte em documentário sensível sobre maternidade interrompida | 2023

NOTA 9.0

A gente não consegue mensurar a tristeza de viver um momento desse

Por Vinícius Martins @tesouronacional 


Quando o pai de Eliza Capai, a diretora de ‘Incompatível com a Vida’, subiu ao palco na última noite do 30⁰ Festival de Cinema de Vitória, ele relatou um evento da infância da outrora garotinha de quatro anos que em muito reflete a inclinação que ela carrega consigo a enxergar positivamente até mesmo as situações mais negativas. Ele se lembrou de uma vez que foi surpreendido pelo choro consternado da pequena Eliza e pelos gritos de uma amiguinha mais velha que ela tinha, alarmando que algo ruim havia acontecido, e quando as encontrou percebeu que a filha deixava atrás de si pegadas de sangue e graxa enquanto caminhava até ele. O dedão de um dos pés de Eliza havia se prendido gravemente na catraca da bicicleta da amiga enquanto ela pegava uma carona, e, após prestar os devidos socorros à menina, o pai ouviu dela a constatação “é pai, ainda bem que foi só o dedão, né… pior se fosse o pé”.

Aquela observação simples serve com eficiência para resumir o modo como Capai encara o mundo e as desventuras que se ocasionam sobre ela. É com esse tom gracioso que seu documentário é conduzido,  mesmo com a seriedade do tema da anencefalia. É importante destacar, no entanto, que o filme não se declara explicitamente como pró ou contra políticas abortivas; existe, claro, um viés político e um posicionamento ideológico por parte de cada uma das entrevistadas, mas a consideração final acerca das melhores decisões a serem tomadas é deixada a cargo do público após uma montanha russa de emoções conflitantes em meio a tantas tragédias pessoais. Capai tem consciência que o acalorado debate sobre a legalização ou não do abordo está longe de acabar, e explora aqui com muita delicadeza e tato o drama de seis mulheres que, assim como ela, tiveram o sonho da maternidade interrompido após a constatação de uma deformidade nos primeiros estágios da gestação, o que inviabiliza a formação plena dos fetos e os leva a óbito durante ou logo após a gravidez.

O título do filme vem de um diagnóstico médico durante uma ultrassom. Capai exprime a dor da notícia da condição do bebê que carrega no ventre e a transforma em uma narrativa intimista, expondo as vísceras do relacionamento com o parceiro e as dificuldades de passar por uma situação tão extrema. O quadro de anencefalia, mais especificamente da Síndrome de Edwards, provoca atrasos graves no desenvolvimento devido a um cromossomo 18 extra. Para abordar a vivência de tantas mulheres distintas além da própria experiência com uma gravidez assim, Capai intercala os relatos com paisagens ordinárias e recortes de arte enquanto as palavras ressoam em off, como um lembrete de que a vida continua acontecendo e o mundo continua girando e ninguém mais se importa com aquela dor - e isso provoca uma mistura de revolta, empatia, impotência e aflição. É poético, aterrador, e terrivelmente impactante - e o mais importante: leva o público a se importar com aquelas mães e as histórias delas com muito carinho e um respeito ímpar.

Com fragmentos de memórias e relatos dolorosos, o filme consegue o feito impressionante de dar a volta em si mesmo e se tornar uma ópera de gratidão. Gratidão pelo aprendizado, pelos filhos, pelo pouco tempo que tiveram juntos, pela experiência de ser mãe. Gratidão pela vida, gratidão por proporcionar vida. Gratidão pelo dom de amar incondicionalmente. E por fim, uma declaração desse amor para que o mundo se lembre que mãe é mãe, independente da circunstância.






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