'Napoleão' : Ridley Scott toma para si a guerra em monumento audiovisual polêmico | 2023
NOTA 7.0
Venha até mim, Napoleão, e vamos tentar de novo
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Até que ponto um filme histórico precisa ser fiel à veracidade factual que está retratando? Fazer um recorte histórico para um filme é o mesmo que montar um quebra-cabeça onde as peças que compõem o mosaico que você quer apresentar estão misturadas às peças de uma centena de outros quebra-cabeças que mostram a mesma imagem em épocas e cores diferentes, e a escolha das peças certas do quadro que se almeja montar exige um tato aguçado e uma visão muito boa para conseguir encontrar o resultado final dentro de cada peça mínima que pode ou não ser capturada para compor o todo. Dentro de uma estrutura cinematográfica com uma narrativa coesa, esses recortes deixam de fora fragmentos que não agregam tanto valor à história principal que planeja-se ser contada - os outros quebra-cabeças, no caso - como um sacrifício em prol da fluidez da trama. Não se engane, todas as cinebiografias e filmes que recontam eventos históricos passam por essa fragmentação e esse filtro criativo.
Antes de entrar no filme em questão, vou citar dois exemplos. O primeiro deles é ‘A Queda!' (2004), que mostra o ditador nazista Adolf Hitler em suas últimas horas de vida, desde o fechamento do cerco até o suicídio. É uma cinebio, mas escolheu um período específico para apresentar. O segundo exemplo é o de ‘Bastardos Inglórios’ (2009), onde Quentin Tarantino reescreve a história ao próprio gosto para subverter as expectativas e imprime uma reparação satírica sobre o horror da segunda grande guerra, escolhendo matar Hitler em um cinema, fuzilado, como se a arte tivesse derrotado o mal. Agora sim, adentrando os méritos de ‘Napoleão’, digo que ele navega em um meio termo entre os dois filmes citados nos exemplos, com um descompromisso que gera ares de indefinição e tende a ser apático justamente por uma falta de aprofundamento.
O diretor Ridley Scott e o roteirista David Scarpa escolheram adentrar a história do imperador Bonaparte com recortes que se tornam uniformes na construção da entidade mitológica que Napoleão acabou se tornando, e deixaram de lado outras faces do homem para impor equilíbrio àquilo que queriam contar. São recortes específicos, em uma linha quase similar à de ‘A Queda!’, mas focada em situações distribuídas entre as duas décadas da ascensão de Napoleão. Por outro lado, contudo, o filme também toma atalhos e liberdades criativas que ignoram deliberadamente consensos de historiadores e demais especialistas na vida do imperador que mais dava trabalho aos carteiros, e se parece nesse aspecto com o que Tarantino fez em seu sexto filme - mas sem o caráter contraintuitivo. Nessa curva, mesmo sendo um filme épico repleto de batalhas, ‘Napoleão’ se aproxima mais de ‘Êxodo: Deuses e Reis’ (2014) do que de ‘Gladiador’ (2000) ou ‘O Último Duelo’ (2021) pelo fato de Scott decidir contar a história não como ela aconteceu, mas como ela funciona melhor dentro da narrativa que está propondo.
Existe uma linha tênue entre a liberdade criativa e a arrogância, e o cinema de modo geral consegue nos entregar obras que defendem ou que condenam esse descompromisso com a verdade. Em ‘Napoleão’ isso não chega a ser condenável (exceto se você for um historiador ferrenho dos conflitos europeus do século XVIII), mas acaba sendo um tropeço porque falta ao filme uma cadência que justifique os recortes que ele mesmo impõe sobre si. O filme é bom em todos os seus quesitos técnicos (até na trilha sonora, que toma emprestada de Dario Marianelli a faixa “Dawn”, de ‘Orgulho e Preconceito’ , de 2005, para ser tema do romance entre Josefina e Napoleão), mas peca por não tornar o público íntimo do protagonista mesmo mostrando a intimidade dele. Particularmente, não me senti íntimo do relacionamento dele, nem dos dilemas políticos, nem das inseguranças que ele possuía, porque tudo acaba sendo superficial devido à distribuição dos fatos nos recortes.
Embora soe prepotente fazer um filme histórico sem um compromisso fidedigno à história, tal feito é inegavelmente corajoso. Com isso, Scott tem adentrado uma guerra com a crítica e com os especialistas e vem lançando respostas afiadas àqueles que questionam as escolhas de seu novo filme monumental. Fica nítido que ele escolheu o espetáculo em vez da fidelidade, e, honestamente, não há problema nisso. Não é um documentário, não é um registro definitivo, não; é só uma versão da história, a versão que Ridley Scott decidiu contar. É polêmico? Sim. Mas também é ousado. E ousadia sempre fez parte do currículo de Ridley Scott, mesmo em seus filmes mais medíocres. Sair do óbvio continua sendo a sua assinatura mais forte.
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