Livro Vs. Filme: Desejo e Reparação
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Seria injusto da minha parte começar a escrever esse artigo sem antes deixar claro o quão pessoal essa obra é para mim. Costumo dizer que, “se você só puder ler mais um livro antes de morrer, então leia Reparação”. Ian McEwan escreveu o melhor romance que já tive o prazer de ler, e Joe Wright transpôs toda a genialidade de 'Reparação’ para intensas duas horas de um verdadeiro espetáculo audiovisual. Ambas as obras recomendo a todos, em especial a você que está lendo.
Livro: Reparação, escrito por Ian McEwan
Filme: Desejo e Reparação, dirigido por Joe Wright
Poucas pessoas no mundo atual conseguem expressar tão bem os complexos presentes na psique humana, explorando o intelecto e o âmago da alma de seus personagens e leitores, como o autor inglês Ian McEwan faz em seus livros. Os dilemas que envolvem suas tramas e subtramas trazem sempre uma carga emotiva íntima, de modo que é inevitável sentir empatia por todos os indivíduos que suas palavras descrevem, desde os mais nobres até os mais miseráveis. O caráter dos personagens que escreve é sempre fonte de questionamento, e suas histórias não costumam envolver mocinhos e vilões; apenas pessoas com qualidades e defeitos, que lutam para conviver umas com as outras e são completas vítimas das circunstâncias e dos desentendimentos que ocorrem entre si.
Em 'Reparação’, McEwan detalha os múltiplos pontos de vista de seus protagonistas com uma riqueza avassaladora, e interliga tudo - desde a peça escrita por Briony até o grande mistério da trama - em uma conexão que se faz inicialmente invisível, se mostrando aos poucos no decorrer da escrita e se revelando por completo no final. A mensagem que está em tudo (que é o que dá o assombro do impactante plot-twist do livro) é descrita já na primeira página: “[...] todo amor que não fosse fundado no bom senso estava fadado ao fracasso.” E McEwan brinca com a expectativa do leitor ao mesmo tempo que alterna as perspectivas de sua narrativa.
O livro é escrito sob os ângulos de diversos narradores envolvidos na história, mas principalmente sob o olhar de Briony, Cecilia e Robbie. Os três são a alma do livro, e no filme são interpretados com uma brutalidade violenta e terrivelmente sensível por Saoirse Ronan, Keira Knightley e James McAvoy. A direção de Joe Wright, que já trazia no currículo o sucesso de 'Orgulho & Preconceito’, adaptação do romance clássico de Jane Austen (também protagonizado por Keira Knightley), mostra um amadurecimento gigante e confirma a qualificação do diretor para filmes de época (caso não esteja ciente de quem é Joe Wright, ele dirigiu 'O Destino de Uma Nação’, indicado ao Oscar 2018).
O enredo, apesar de aparentemente simples, é um exercício de frieza e cálculo. É perfeitamente compreensível a motivação de Briony, que, com sua mente imensamente criativa, termina em acusar um “psicopata em potencial” por um crime que ela sabe que ele não cometeu só para proteger a irmã; e o ciúme subentendido na intenção da criança, por acompanhar inocentemente o flerte entre Robbie e Cecilia sem entender o quão profundo era o elo entre eles, mostra que, talvez, sua inocência não fosse tão pura assim. É nesse ponto, após cometer a injustiça e destruir a vida de pessoas próximas por uma opinião mal formada e egoísta, que entra para Briony o contexto de reparação expresso no título.
Apesar de mostrar como o julgamento errado pode demonizar uma pessoa, o livro se esquiva de julgar seus personagens. E o filme segue uma linha equivalente, apresentando os fatos e visões de modo a justificar a ação de cada um, tornando cada ato equivocado em um argumento defensável. E os horrores das consequências são espectros de uma beleza horrível, principalmente quando Robbie é mandado para a guerra. Um plano sequência na praia em Dunquerque exibe soldados feridos, pessoas mutiladas, lamentos pesarosos e a desesperança de milhares de homens que já não tem mais do que uma visão longínqua no horizonte para se agarrar, um vislumbre ilusório de retorno para a casa - e tudo isso acompanhado da trilha desoladora vencedora do Oscar composta pelo brilhante Dario Marianelli.
O caráter de Robbie é mostrado em vias diferentes no filme. No livro, a sequência de um bombardeio em que ele se empenha em salvar uma mulher e seu filho, assim como a cena que envolve o aviador no bar em Dunquerque, mostra seu altruísmo e sua tamanha benevolência com aqueles que não podem se defender sozinhos; no filme ele é somente um cara que anseia voltar para os braços de sua amada e viver com ela em um chalé à beira mar.
O filme tem suas liberdades criativas, mas não toma posição e nem permite uma abrangência interpretativa (o que é usado para justificar as “visões do diretor” sobre o assunto tratado). O pensamento aqui é de que “se a história do livro é essa então vamos segui-la”, o que resulta em uma das melhores adaptações já feitas. Tudo está lá, as boas e más intenções, os erros e acertos, os frutos podres colhidos após o semear da discórdia e principalmente a compaixão provinda do arrependimento. Toda mentira, por mais “nobre” que seja a razão de sua criação, tem um preço. E o filme não se desvia de exibir a dor de pagá-lo.
'Reparação’ é uma história sobre a culpa e o sentimento devastador que ela induz, onde os culpados não são necessariamente vilões. Seu filme é fidelíssimo, e tão emocionante quanto cada frase de McEwan. Sem sombra de dúvidas, esse é o melhor romance já escrito. Te desafio a me provar o contrário.
Seria injusto da minha parte começar a escrever esse artigo sem antes deixar claro o quão pessoal essa obra é para mim. Costumo dizer que, “se você só puder ler mais um livro antes de morrer, então leia Reparação”. Ian McEwan escreveu o melhor romance que já tive o prazer de ler, e Joe Wright transpôs toda a genialidade de 'Reparação’ para intensas duas horas de um verdadeiro espetáculo audiovisual. Ambas as obras recomendo a todos, em especial a você que está lendo.
Livro: Reparação, escrito por Ian McEwan
Filme: Desejo e Reparação, dirigido por Joe Wright
Poucas pessoas no mundo atual conseguem expressar tão bem os complexos presentes na psique humana, explorando o intelecto e o âmago da alma de seus personagens e leitores, como o autor inglês Ian McEwan faz em seus livros. Os dilemas que envolvem suas tramas e subtramas trazem sempre uma carga emotiva íntima, de modo que é inevitável sentir empatia por todos os indivíduos que suas palavras descrevem, desde os mais nobres até os mais miseráveis. O caráter dos personagens que escreve é sempre fonte de questionamento, e suas histórias não costumam envolver mocinhos e vilões; apenas pessoas com qualidades e defeitos, que lutam para conviver umas com as outras e são completas vítimas das circunstâncias e dos desentendimentos que ocorrem entre si.
Em 'Reparação’, McEwan detalha os múltiplos pontos de vista de seus protagonistas com uma riqueza avassaladora, e interliga tudo - desde a peça escrita por Briony até o grande mistério da trama - em uma conexão que se faz inicialmente invisível, se mostrando aos poucos no decorrer da escrita e se revelando por completo no final. A mensagem que está em tudo (que é o que dá o assombro do impactante plot-twist do livro) é descrita já na primeira página: “[...] todo amor que não fosse fundado no bom senso estava fadado ao fracasso.” E McEwan brinca com a expectativa do leitor ao mesmo tempo que alterna as perspectivas de sua narrativa.
O livro é escrito sob os ângulos de diversos narradores envolvidos na história, mas principalmente sob o olhar de Briony, Cecilia e Robbie. Os três são a alma do livro, e no filme são interpretados com uma brutalidade violenta e terrivelmente sensível por Saoirse Ronan, Keira Knightley e James McAvoy. A direção de Joe Wright, que já trazia no currículo o sucesso de 'Orgulho & Preconceito’, adaptação do romance clássico de Jane Austen (também protagonizado por Keira Knightley), mostra um amadurecimento gigante e confirma a qualificação do diretor para filmes de época (caso não esteja ciente de quem é Joe Wright, ele dirigiu 'O Destino de Uma Nação’, indicado ao Oscar 2018).
O enredo, apesar de aparentemente simples, é um exercício de frieza e cálculo. É perfeitamente compreensível a motivação de Briony, que, com sua mente imensamente criativa, termina em acusar um “psicopata em potencial” por um crime que ela sabe que ele não cometeu só para proteger a irmã; e o ciúme subentendido na intenção da criança, por acompanhar inocentemente o flerte entre Robbie e Cecilia sem entender o quão profundo era o elo entre eles, mostra que, talvez, sua inocência não fosse tão pura assim. É nesse ponto, após cometer a injustiça e destruir a vida de pessoas próximas por uma opinião mal formada e egoísta, que entra para Briony o contexto de reparação expresso no título.
Apesar de mostrar como o julgamento errado pode demonizar uma pessoa, o livro se esquiva de julgar seus personagens. E o filme segue uma linha equivalente, apresentando os fatos e visões de modo a justificar a ação de cada um, tornando cada ato equivocado em um argumento defensável. E os horrores das consequências são espectros de uma beleza horrível, principalmente quando Robbie é mandado para a guerra. Um plano sequência na praia em Dunquerque exibe soldados feridos, pessoas mutiladas, lamentos pesarosos e a desesperança de milhares de homens que já não tem mais do que uma visão longínqua no horizonte para se agarrar, um vislumbre ilusório de retorno para a casa - e tudo isso acompanhado da trilha desoladora vencedora do Oscar composta pelo brilhante Dario Marianelli.
O caráter de Robbie é mostrado em vias diferentes no filme. No livro, a sequência de um bombardeio em que ele se empenha em salvar uma mulher e seu filho, assim como a cena que envolve o aviador no bar em Dunquerque, mostra seu altruísmo e sua tamanha benevolência com aqueles que não podem se defender sozinhos; no filme ele é somente um cara que anseia voltar para os braços de sua amada e viver com ela em um chalé à beira mar.
O filme tem suas liberdades criativas, mas não toma posição e nem permite uma abrangência interpretativa (o que é usado para justificar as “visões do diretor” sobre o assunto tratado). O pensamento aqui é de que “se a história do livro é essa então vamos segui-la”, o que resulta em uma das melhores adaptações já feitas. Tudo está lá, as boas e más intenções, os erros e acertos, os frutos podres colhidos após o semear da discórdia e principalmente a compaixão provinda do arrependimento. Toda mentira, por mais “nobre” que seja a razão de sua criação, tem um preço. E o filme não se desvia de exibir a dor de pagá-lo.
'Reparação’ é uma história sobre a culpa e o sentimento devastador que ela induz, onde os culpados não são necessariamente vilões. Seu filme é fidelíssimo, e tão emocionante quanto cada frase de McEwan. Sem sombra de dúvidas, esse é o melhor romance já escrito. Te desafio a me provar o contrário.
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