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Dica do Papo - 'Coração Selvagem' | 1990

Por Rogério Machado



Não sei dizer quando foi que Nicolas Cage passou de estrela de filmes cult , a mocinho de filmes B que raramente chegam às salas de cinema e sofrem com a má qualidade em todos os requisitos, como roteiro,  produção e composição de personagem. Houve um tempo em que ele ainda tinha o perfil preterido por grandes cineastas como Mike Figgs ou David Linch,  cujo um de seus trabalhos é nosso destaque de hoje na sessão que traz filmes que marcaram época. 'Coração Selvagem', de 1990 , trazia Cage como um sujeito livre e inconsequente, uma mistura de personas que estão acima do bem e do mal. 




Na trama  de David Linch, Cage é Sailor Ripley um homem misterioso e que gosta de cantar canções do Elvis Presley. Ele namora Lula Fortune (Laura Dern), filha da excêntrica Marietta Pace Fortune (Diane Ladd) uma sulista rica e de comportamento instável que não aceitava a relação da filha com Sailor,  mas não exatamente por se preocupar com ela e sim pelo simples fato de que Marietta queria tanto transar com Sailor que foi ao banheiro masculino para tentar seduzi-lo. Mas como ele a repudiou categoricamente, ela imediatamente mandou Bob Ray Lemmon (Gregg Dandridge), um capanga, para cumprir uma ameaça dita no banheiro. Entretanto, Sailor reagiu prontamente e, com as mãos limpas, matou Bob Ray sem a menor cerimônia, o que ocasionou em sua prisão.

Quase dois anos depois, ele foi posto em liberdade e, juntamente com Lula, viaja para a Califórnia, fazendo com que Ripley quebre sua condicional. Durante o trajeto ele dá vazão à fixação que tem por Elvis Presley, enquanto Lula tem obsessão pela bruxa má do leste de "O Mágico de Oz". Enquanto a viagem transcorre, eles fazem muito sexo, compartilham seus passados, são perseguidos por Marcello Santos (J.E. Freeman), um assassino contratado por Marietta, e conhecem diversos tipos bizarros, mas principalmente conhecem Bobby Peru (Willem Dafoe), um ex-fuzileiro naval que convence Sailor a participar de um assalto.



Lynch não segue regras nem convenções, e, surrealista como é, nem em 'Coração Selvagem' (uma história de amor) ele abre mão de devaneios e, na narrativa em questão, da subversão do conto de fadas e  filmes de romance. Até quando ele cria filmes que não abordam com tanta liberdade o que vai além do inconsciente das pessoas, sua marca ainda está presente nessas obras. 'Wild at Heart' (no original), ganhador da Palma de Ouro em 1990, prova isso, e mistura road movie e uma espécie de homenagem à Elvis Presley e a "O Mágico de Oz" em seus 120 minutos alucinantes. O filme assume tantas características de um conto de fadas sombrio contado na beira das estradas norte-americanas que um simples road movie acaba virando um drama de humor negro com as características principais de David Lynch. Seus cortes abruptos ainda estão lá, embora cada vez com mais coerência, e por mais que seja um de seus filmes mais fáceis, ainda é perturbador ver tamanha violência e uma repulsa extrema adquirida pelo cenário e pelos próprios personagens. Os personagens caricatos conseguem passar a mensagem adiante dessa trama que busca por valores completamente desconhecidos para personalidades incrivelmente confusas em seus próprios desejos.


Tudo na obra envolve um superlativo. O amor aqui é exacerbado o bastante para os detalhes não serem escondidos. Enquanto carícias e beijos mostram a aproximação dos dois protagonistas, o sexo entra em cena logo na tomada seguinte, com uma ardência que contagia o público, sempre colorido por uma fotografia supersaturada, cobrindo a tela mas não escondendo o amor. 

A loucura tem seu lado tão característico na figura de Marietta que ela acaba se desligando de uma personagem e entrando em outra numa fração de segundos. A violência é forte em seus momentos, que variam desde um tiro de espingarda que arranca uma cabeça até o personagem de Nicolas Cage esmurrando um homem até a morte. O exagero faz parte de tudo. 


O estilo Nicolas Cage de ser - mostrando como ele conseguia atrair as atenções sem precisar fazer um papel tão caricato num filme de ação - lembra tanto o rei do rock quanto o seu discurso repetitivo. As cenas da sonhadora Laura Dern, que interpreta Lula com segurança, completam esse estilo rebelde. Entre falas sobre a Bruxa Má do Leste e canções de amor, o desfecho da obra é clichê, mas delicioso. 



Afinal, não há outra maneira de acabar uma história de amor sem o amor, e David Lynch sabe disso. Entre a esquizofrenia e a epifania há a dolorosa paixão que fisgou dois corações selvagens. Aqui, Diane Ladd entra em sua personagem com maestria e com um sofrimento sem igual, sua vilã ficou perfeita em todas as esferas e caricata o bastante para se enquadrar nessas imagens de um manicômio que Lynch oferece. Willem Dafoe é outra grata surpresa do longa, dando uma atuação quase que necessária ao seu Bobby Peru.

David Lynch mistura todos esses elementos de forma a construir essa narrativa curiosa: um romance dramático e perturbador de humor negro que ocorre nas estradas. Tudo é tão bem construído aqui, numa edição grandiosa do mestre surrealista do cinema, que o filme vai além da objetividade em sua loucura romântica.




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