Adsense Cabeçalho

PiTacO do PapO - 'O Doutrinador' | 2018

NOTA 6.5

Definitivamente, não é Missão: Impossível

Por Vinícius Martins @cinemarcante


O cinema se molda de acordo com a realidade, e muitas vezes propõe um escapismo através da fantasia. A fantasia, por sua vez, busca quase sempre firmar sua base em alguma verdade histórica. Um exemplo vivo e atual desse conceito se faz encarnado em 'O Doutrinador’, filme brasileiro que é uma adaptação da HQ criada pelo também brasileiro Luciano Cunha. Apesar de adequado à atualidade, o longa acaba soando oportuno e pega carona nas tendências violentas que dividiram opiniões nos últimos meses, dando ao espectador uma refeição satisfatória de justiça sendo feita com as próprias mãos e quebrando - momentaneamente - o sentimento de impunidade no ramo político.

Em uma primeira impressão, a proposta passada no trailer remete imediatamente ao icônico 'V de Vingança', graphic novel publicada sob o selo Vertigo e adaptada aos cinemas em 2005, contando a história de um mascarado que cria um plano mirabolante para desmantelar um esquema de corrupção que domina os meios político, religioso e científico de uma Londres futurista. Muito de 'V de Vingança' está no conceito básico de 'O Doutrinador’, mas o bruto do material passa longe de ter a mesma qualidade em seu discurso e ideologia. A HQ, por outro lado, se aproxima mais da ópera de Guy Fawkes e mantém o mascarado como uma entidade, um ícone cuja identidade permanece em mistério, e que caça políticos reais cujos nomes vemos rotineiramente envolvidos em escândalos de corrupção nos telejornais. Vale notar que usar aqui figurões inventados é um recurso para evitar processos e conflitos políticos, de modo a agradar a todos que forem assistir ao filme, sem ser acusado de pender para a direita, esquerda ou qualquer outra posição política a que se possa fazer oposição. Assim sendo, é visível que a intensidade com que a coragem sobra na HQ é a mesma que ela falta no filme, que decide “dar nome ao diabo” e contar sua história com uma cartilha montada para a identificação com o grande público.



O enredo que domina o filme se assemelha mais com o do Justiceiro, personagem anti-herói da Marvel, pelos fatores pessoais que compõem a inclinação que move as engrenagens da vingança do protagonista. Só que se no caso do Justiceiro a vingança é bem trabalhada e pessoal, aqui ela é uma desculpa rasa para justificar a revolta contra o sistema enquanto tenta-se ser pessoal e emotivo. Em suma, matar corruptos parece mais um passatempo do que um escape para a dor do luto ou uma caçada aos responsáveis pela desgraça que ocorreu. Tirando o governador, não há desenvolvimento para dar a tal satisfação ao público por ver um corrupto sendo assassinado. Não há espaço para o degustar da vingança justiça, e a quebra da facção no meio do filme se torna só uma carnificina comum. Existe o demonizar de um empresário e de uma influente ministra, mas não há empatia para justificar ao público a sede do Doutrinador em matá-los. Sua intenção de vingar a morte da filha se torna, aos poucos, apenas um gatilho (ou desculpa) que o roteiro dá para justificar o início à matança.

No que diz respeito a política, é fácil traçar um paralelo entre as eleições e o cenário político atual com a moralidade questionável da produção. Olhando para a realidade, argumenta-se que a popularidade de Bolsonaro foi fabricada pelo PT, sendo fruto de sua incompetência e da corrupção desmascarada que tocou conta do país nesta década; olhando para a ficção proposta pelo filme, argumenta-se, com palavras ditas em uma cena de debate, que o surgimento do Doutrinador é fruto de um povo cansado de corrupção e a aclamação da população sobre esse novo “herói nacional” se dá pela incredulidade de que o diálogo, a consciência e a democracia sejam suficientes para combater a corrupção sem o bom e velho uso da violência - não é a toa que 'O Doutrinador' teve sua estreia adiada por dois meses.

O filme tenta se sustentar sozinho, mas enfia referências visuais sem sentido gratuitamente para passar uma imagem que não condiz com o conceito do caso apresentado. Exemplo disso são as tomadas aéreas externas noturnas, que centralizam a figura do Doutrinador no alto de prédios da cidade como se fosse um vigilante igual ao Batman, predisposto a combater o crime nos becos da cidade e aguardando visualizar alguma coisa fora do comum para salvar o dia a noite. O Doutrinador não é um herói nobre, com um código de conduta a seguir, que visa a defesa das pessoas de bem da cidade onde mora. Seu alvo é bem específico e não exigem essa encenação toda, o que faz com que cenas assim soem, além de despropositadas, extremamente cafonas. Os modismos não param por aí, e o filme tenta reproduzir um clima de superação e revanche, mas também falta espaço para que o público sinta a passagem do tempo (que não é mostrado por nenhum outro artifício; a barba de Miguel não cresce mesmo após o seu confinamento de meses!). E apesar das boas sequências de lutas, fica o débito de um capricho no roteiro.

Teria sido ótimo se, por exemplo, a filha falecida fosse uma aspirante a nerd amante de ópera e Miguel, após a sua morte, fosse caçar aqueles que desviaram as verbas públicas que poderiam tê-la salvo ao som de Mozart - pelo menos teria tido muito mais sentido do que acreditar que uma garotinha de seis anos colocava em sua playlist uns rocks pesados como 'Black Hole Sun, quando provavelmente teria 'Let It Go' e outras canções da trilha de 'Frozen'. Fiquei me perguntando se o que tocava nos fones enquanto Miguel corria pelas ruas para tratar o próprio luto seria o rock carregado que reverberou das caixas de som do cinema ou se seria um equívoco da edição, que acidentalmente casou os momentos em que Miguel coloca o iPad da filha nos ouvidos com o acréscimo de músicas que parecem ter sido escolhidas por um homem de trinta e cinco anos.

Entre erros e acertos, 'O Doutrinador’ está aí e não pode ser ignorado. Não é, em nada, um filme que peça a experiência de ir ao cinema, mas é importante prestigiá-lo e dar algum crédito por ser uma voz crítica em meio a dúzias de filmes “mudos” que são lançados semanalmente apenas com o intuito de fazer dinheiro. Esse, assim espera-se, pode quem sabe gerar uma consciência política nova para eleitores e candidatos, mesmo que através do medo ou da descrença na mudança pelo diálogo.


Vale Ver , Mas Nem Tanto !





Nenhum comentário