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PiTacO do PapO - 'O Rei Leão' | 2019 Crítica 2

NOTA 9.0

A arte da autocontemplação

Por Vinícius Martins @cinemarcante

Quando há uma conexão emocional extremamente forte entre um público e uma obra específica, propor o revisitar a tais personagens se torna uma atividade bastante perigosa para quem produz uma nova versão. Este é exatamente o caso de 'O Rei Leão', que se ergue na temporada do verão americano de 2019 com força suficiente para polarizar o público entre os sentimentos de amor e ódio - e talvez uma mistura de ambos para muitas pessoas. Porém, antes de fazer qualquer análise ou julgamento sobre o novo filme, é necessário entender o que ele é.


Apesar de parecer adequado, chamar esta versão de 'O Rei Leão' de live-action é um erro comum. Trata-se de uma edição produzida através de computação gráfica e captura de movimentos, criando um visual fotorealista que gera a ilusão de que o que vemos talvez possa ser, de fato, um aglomerado de animais de verdade; em outras palavras, uma animação mais moderna. Tendo isso em vista, fica evidente a intenção do diretor Jon Favreau em criar uma atmosfera imersiva no modo mais fiel possível à realidade (desconsiderando, é claro, o componente de fala dos bichos). Logo, se a intenção é um apelo ao visual crível e mais próximo do real, é natural que se abra mão das "licenças poéticas" e expressões humanas adotadas no desenho, que foram empregadas lá para facilitar a compreensão acerca do que os personagens estavam sentindo. Esse aspecto pode parecer apático e, por falta de uma palavra melhor, inexpressivo também. No desenho de 1994, quando Rafiki e Mufasa se encontram no decorrer da música da abertura, se cumprimentam com um abraço saudoso. Tal demonstração de afeto, apesar de bem amigável e simbólica, é incoerente com o comportamento natural de tais animais; essa saudação é tipicamente humana. Desta vez, Rafiki apenas toca a face de Mufasa, em uma reverência respeitosa. Além dessa aparente "impessoalidade" no filme que chega agora aos cinemas, agrega-se o fato de que os leões e os demais bichos não choram rios de lágrimas ou franzem o cenho, como se fazia costumeiramente no longa original. Deste modo, o luto, tema constante no filme, se torna visualmente frio e indiferente em sua aparência externa. Para apreciar a obra, então, deve-se levar tais fatores em consideração para que, assim, possa-se ter uma experiência de desprendimento com a animação de vinte e cinco anos atrás e entender que a ideia aqui é outra, embora a história seja a mesma.

Todavia, mesmo com a proposta voltada para apresentar animais de verdade interagindo em tela, o filme peca em dois pontos importantes: 1. o quesito dublagem musical, que se estende desde o original até a versão brasileira, que faz as canções ficarem inorgânicas nas bocas de vários bichos e, com isso, se tornarem caricaturas grotescas de tal modo que podem ser comparadas com as apresentadas em ‘Perdido Pra Cachorro’, também da Disney, que conta a história de chihuahuas perdidos em Beverly Hills. Essa estranheza é porque, como todos bem sabemos, animais assim não cantam ou reproduzem som de maneira silábica como nós, humanos, então não há um modelo ou padrão a ser copiado; 2. a incoerência de algumas falas do roteiro, principalmente por parte de Pumba. Em dois momentos diferentes ele faz comentários engraçados sobre conservantes e bullying, que são conceitos extra-naturais a que os bichos não teriam como conhecer. São piadas, é claro, mas ainda assim fogem da proposta da própria obra como unidade.

Há algumas modificações interessantes que adaptam alguns pontos e ampliam outros, dando para a mitologia de Simba caminhos diferentes e um tanto curiosos. É colocada uma explicação para o fato de Scar ter permanecido no bando: em um cenário normal, o macho alfa, que é cercado pelas fêmeas e copula com todas elas (o que tornaria a relação entre Simba e Nala incestuosa em nossa cultura, já que eles são irmãos por parte de pai; vamos ignorar isso e seguir com o raciocínio), teria que derrotar e expulsar todos os demais machos adultos que existam no bando e também aqueles que queiram invadi-lo, justamente para evitar que qualquer um deles possa se voltar contra ele no futuro e tomar o seu lugar. Nesta visão reimaginada, Scar é um leão derrotado que permanece no grupo por misericórdia do irmão, Mufasa, que percebe que o leão com a marca de cicatriz não tem para onde ir. Scar, que na animação usou a culpa sentida por Simba para induzi-lo a permanecer no desfiladeiro, aqui usa a ambição ansiosa do pequeno leão para colocá-lo em sua derradeira armadilha. Simba quer deixar de ser criança, quer ter o reconhecimento de uma presença tão imponente quanto a de seu pai, e esta acaba se tornando a sua sentença para o exílio; e é através disso, da morte de seu pai, que vem a culpa como gatilho condutor para o restante da trama. Nala aqui tem uma razão para ter ido tão longe das Terras do Reino, o que inclusive justifica sua “esbarrada” com Simba, Timão e Pumba. Enfim, as mudanças em geral enriqueceram e trouxeram um ar adicional de sentido à representação da natureza da fauna presente. Entretanto, as mudanças são mínimas se comparadas com a reprodução fidedigna que o filme traz de sua versão animada.

Não há exagero em afirmar que ‘O Rei Leão’ é um patrimônio emocional da humanidade. O novo filme mantém uma fidelidade louvável ao seu material de origem, e isso é lindo de ver em traços mais realistas; em especial a abertura, que reproduziu os ângulos de fotografia e tornou os frames dos dois filmes passíveis de um “jogo dos sete erros”, se comparados lado a lado. Cada detalhe, cuidadosamente observado, torna a experiência de ver ‘O Rei Leão’ em sua nova roupagem em um delírio surreal de realismo, se é que esse termo é possível. A riqueza do filme de Favreau (ator, produtor, roteirista e diretor que você pode conhecer melhor na coluna Grandes Mestres, clicando aqui) está no respeito aos fãs, na consideração com a geração que cresceu ouvindo as canções escritas por Elton John e Tim Rice, na lembrança das lágrimas que caíram ao som da trilha sonora vencedora do Oscar, composta por Hans Zimmer. Essa riqueza está presente na memória coletiva das salas de cinema lotadas, que agora aplaudem o belíssimo trabalho feito pela Disney em promover a nostalgia e aquecer os corações daqueles que já se emocionaram em algum momento no passado. 


Super Vale Ver !



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