PiTacO do PapO - 'História de um Casamento' | 2019
NOTA 10
As mazelas da insuficiência
Por Vinícius Martins @cinemarcante
Há uma canção de confissões, do sambista Noel Rosa, chamada 'Pela Décima Vez'. Na voz de Bethânia, com sua entonação tão intimista e experiente, a canção ganhou ares um tanto mais sinceros e trágicos, como se a dor que ela transmite não tivesse, ainda, atingido seu ápice. Há um verso muito curioso, logo no começo, que diz: "o costume é a força que fala mais alto do que a natureza". Essas palavras, tão antigas e tão atuais, já bastariam por si só para definir com exatidão a jornada de 'História de um Casamento', novo filme original do streaming Netflix. Todavia, mais do que isso, elas se encaixam perfeitamente em um momento específico da trama, onde em um diálogo acalorado, já durante o processo de divórcio, Nicole (Scarlett Johansson) chama Charlie (Adam Driver) de "amor" por pelo menos duas vezes, e a conversa continua como se nada tivesse acontecido. Existem duas possibilidades aqui: ou os dois não notaram quão grande foi o "deslize" provocado pelo hábito ou simplesmente ignoraram a demonstração automática de afeto e decidiram, mutuamente, continuar a trocar farpas entre si. Honestamente, não sei qual delas é pior. A tragédia por trás desse momento tão rápido e mecânico é que, pelo simples fato de eles não terem atribuído significado a ele, já não importava nada para os dois.
O novo filme de Noah Baumbach (que ouso afirmar ser o melhor de sua carreira até o momento) é uma sobrecarga de humanidade lúcida. Todos aqui possuem falhas e não há um lado mais correto do que o outro; as qualidades e defeitos do casal de artistas são intimamente equilibradas, e escolher previamente um lado a ser defendido, sem levar em conta todo o contexto e as versões da mesma história, se torna uma atividade ingrata para aqueles que assistirem ao filme predispostos a se posicionarem a favor do homem ou da mulher só por uma questão de identificação de gênero. O roteiro de Noah é cirúrgico ao apresentar as duas faces da moeda, e com isso expor o marido e a esposa não com um cumprindo o papel de mocinho e o outro de vilão, não; as pessoas do filme possuem alma, textura, camadas, e não podem ser meramente presas a um rótulo de boas ou más pessoas. Até o núcleo corporativo do longa, encabeçado pelos advogados interpretados por Laura Dern e Ray Liotta, é passível a empatia e são perfeitamente compreensíveis em suas motivações, por mais baixas que possam parecer. Há espaço também para debates a respeito do sexismo, que fica mais evidente em uma sequência de ensaio comportamental de Johansson, com Dern falando sobre a sociedade não aceitar os erros de uma mãe com a mesma facilidade que aceita os do pai, e que há uma doutrinação social enrustida de sempre julgar a mulher um nível acima, como se fosse incumbência dela ser uma beata como Maria, a mãe de Cristo.
No meio da tempestade de um provável divórcio está o filho do casal, Henry, que é o elo pacificador entre as partes - mesmo sendo, também, a maior razão da disputa judicial. A ligação eterna de ter um filho em comum torna ainda mais sensível cada ofensa levantada, cada má palavra proferida, cada lágrima derrubada pelos dois. No entanto, a paixão velada permanece em momentos sutis de gentileza, quando nota-se a evidente preocupação que um tem com o bem estar do outro mesmo enquanto estão se separando. E a música de Randy Newman cumpre perfeitamente seu papel de tornar épico o cotidiano, de fazer palpável o sentimento que paira no ar, de conduzir os espectadores aos devaneios da raiva e da compaixão. Sentimentos são o combustível desta produção, com uma relação que transborda da tela e atinge o público com repetidos baques. Nada é gratuito e tudo tem um impacto significativo; seja nas repetidas vezes que Charlie se irrita quando alguém fala sobre o espaço de Los Angeles ou nos monólogos belíssimos e extensos que aparecem vez ou outra como desabafos fatigados, cada nova informação colabora para moldar a imagem de imperfeições das partes coexistentes na vida do pequeno Henry.
O verso da canção de Noel Rosa, que fala sobre o costume, é logo seguido por um outro que, apesar de adequado à música, parece caber com ingratidão no filme. O trecho completo diz: "O costume é a força que fala mais alto do que a natureza, e que nos faz dar prova de fraqueza." Após chamar Charlie de "amor" pela segunda vez, Nicole logo se aprumou e notificou a si mesma com "eu tenho que parar de falar isso", e a vida seguiu com a discussão crescendo e o sangue dos dois esquentando. Costume. Que vida complicada! Pelas palavras do nosso editor-chefe Rogério Machado, este "é paradoxalmente um filme amargo com altos níveis de doçura." Seja na troca de olhares enquanto um portão se fecha, nas palavras não ditas na hora certa, ou na tardia confissão de amor eterno, o casal que se desmancha ainda conseguiu encontrar suporte um no outro para coisas mínimas (porém cheias de zelo) como sair no meio da noite para atender o outro quando há uma pane elétrica, cortar o cabelo como se fazia antes da crise, ou apenas o simples gesto de se ajoelhar perante o outro para amarrar-lhe o cadarço. O filme é humano porque mostra que, acima dos problemas enfrentados, eles não se tornaram monstros um para o outro. Eles continuam sendo pessoas queridas.
Super Vale Ver !
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