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'Dois Irmãos' e a anatomia da ausência | 2020

NOTA 8.0

A reconstrução da identidade

Por Vinícius Martins @cinemarcante


Em quê você pensa quando escuta alguém falando sobre a “magia do cinema”? Eu me recordo de sensações intensas como empatia e imersão, de me sentir extasiado com o vislumbrar de tantas outras experiências e vidas fora do meu alcance, e de estar maravilhado com a contemplação do oceano de possibilidades que ainda existe a ser explorado. A magia do cinema, somada à magia Disney, tem agora uma parcela significativa sendo revisitada em uma trama que trata a magia - e a necessidade dela como agente de encantamentos, nos múltiplos sentidos dessa palavra - no seu estado mais amplo. O 22º filme do estúdio Pixar não é o melhor dentre os já existentes em seu rico catálogo de obras, mas certamente possui todos os ingredientes que cativam e emocionam o seu público de idades abrangentes. ‘Dois Irmãos - Uma Jornada Fantástica’ é um longa-metragem que, apesar de não ser inovador, consegue manter com louvores a fórmula emocionante que já é marca registrada da luminária saltitante.


O filme conta a história de Ian e Barley, dois irmãos elfos que se tornaram órfãos de pai muito cedo. O mais velho era ainda bem pequeno quando o pai foi acometido por uma doença e o mais novo nem sequer chegou a conhecê-lo. E então, com a passagem à maioridade de ambos os irmãos, a mãe entrega um presente dado pelo pai especialmente para a ocasião: um cajado e uma jóia, que juntos a uma sequência correta de palavras mágicas são capazes de trazer o pai de volta à vida por vinte e quatro horas. A magia dá errado, como já apresentado nos trailers, e os irmãos precisam correr contra o tempo para conseguir concluir o processo e reencontrar o pai (ou, no caso, a metade de cima do corpo dele) antes que seja tarde demais. Para conseguir esse feito, a dupla precisa aprender mais sobre magia e praticar feitiços novos, enquanto se desbravam em um caminho sem volta rumo ao desconhecido, que mudará a vida de ambos (e as percepções que possuem entre si) para sempre. Há aqui uma junção curiosa de elementos de RPG, existencialismo e mitologias. A estrutura enredada remete a outras histórias, principalmente a ‘Anjos e Demônios’ (livro de Dan Brown adaptado aos cinemas sob a direção de Ron Howard), com o seu “que os anjos o guiem em sua busca sublime”. Todavia, o que mais se explora aqui - mais até do que o teor aventuresco proposto - é o nível de entrelaçamento nos relacionamentos paterno e fraterno. A ausência do pai é sentida por Ian, o filho mais novo (dublado na versão original por Tom Holland), com uma sensibilidade inquietante. A jornada evolutiva que ele protagoniza ao lado do irmão (voz original de Chris Pratt, que retorna às animações após os dois ‘Uma Aventura Lego’) é trágica e ao mesmo tempo poética, mostrando as faces de quem reluta contra os assuntos inacabados do passado enquanto procura seguir adiante com a vida.

No entanto, o filme cresce sem muita força ao soar contraditório em si mesmo. Vende-se a ideia de um mundo sem magia e, simultaneamente, tudo que é mostrado na tela é mágico. Aqui seres com asas desconhecem a capacidade de voar - coisa que nada tem a ver com alguma mágica propriamente dita, já que se trata da estrutura física das criaturas, o que levanta a questão: como foi que pararam de voar se o vôo não depende da magia para acontecer? O argumento da trama é que o mundo se tornou prático demais e as pessoas/criaturas se esqueceram da magia e de como usá-la. Até aí tudo bem, mas voar? Bem, independente desse ponto, até que a obra se estabeleça e se faça entender como quer ser entendida vai-se lá um tempo mais extenso do que o habitual aos filmes da Pixar. Mas quando ele engata, por outro lado, aí é que “a magia acontece”. A ação dá os movimentos necessários à história para que a atenção do público seja ganha e, com ela, o coração de qualquer pessoa que precise conviver com alguma ausência do passado. E no fim das contas, é exatamente sobre isso que o filme é: uma crônica desesperada (e emocionante) de reencontro.

A jornada explicitada é a da aceitação do inevitável, da finitude e, por consequência, da falta; contudo, é principalmente uma obra de louvor ao contentamento com as maravilhas que já se tem, a fim de entender quem realmente se é. Entre palavras não ditas, abraços distantes e lembranças não compartilhadas, as meias-histórias envolvendo o meio-homem ganham corpo e conquistam o público pela simplicidade com que a fragilidade de seus protagonistas é tratada. Não há sentimentos maquiados, nem mascarados sob uma série de camadas a serem exploradas em questionamentos existenciais após a sessão; aqui as coisas são verdadeiras, puras e simples, mesmo que sejam, ironicamente, magia. 

Vale Ver !

PS:

¹ Há um avanço nos quesitos diversidade e representatividade, você verá no filme. É prático e trabalhado com naturalidade, e fico feliz em ver que, aos poucos, o respeito conquista o espaço que lhe é direito.

² Não sei como uma elfa e um centauro conseguem se relacionar. Tenho medo de daqui certo tempo encontrar algum vídeo ilustrando o ato. Parece que a Pixar fabricou sua versão de Burro + Dragão.

³ A trilha de Jeff e Mychael Danna para o filme é espetacular. Já gostava do trabalho deles, principalmente pela excelente música de ‘O Bom Dinossauro’, e agora eu os aprecio mais ainda.


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