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Especial 10 anos: O primor técnico da trilogia 'Como Treinar o Seu Dragão'

Por Vinícius Martins @cinemarcante 

🎯CONTÉM SPOILERS

Várias animações chegaram aos cinemas nos anos 2010. Teve conclusão de saga, teve sequência de filme quase debutante, teve filme original independente, teve técnicas inovadoras e aperfeiçoamento das demais já existentes, e teve também o abrir e o fechar do arco de trilogias. E dessa última categoria, onde estão os longas de ‘Hotel Transilvânia’ e ‘Meu Malvado Favorito’ (que inclusive ganhou um derivado, cuja sequência chegará aos cinemas este ano), destacamos a melhor trilogia animada da última década (e que tem também um dos melhores filmes animados já feitos). Vamos começar a falar agora da trilogia ‘Como Treinar o Seu Dragão’ e de como ela é revolucionária em todas as suas camadas.


Dirigido por Chris Sanders e Dean Deblois e baseado nos livros de Cressida Cowell, a animação da DreamWorks contou com um elenco técnico de primeira qualidade. Hoje vamos falar sobre esse aspecto e logo logo, na parte 2 deste especial de dez anos desde o lançamento do primeiro filme, vamos comentar os aspectos mais importantes da trama e destacar a importância que ela tem na formação de consciência das pessoas, grandes ou pequenas.


O PLANO DE ABERTURA

‘Como Treinar o Seu Dragão’ começa com uma externa noturna, onde todos os moradores da ilha de Berk se vêem em meio a mais um ataque de dragões, que já era algo rotineiro a eles. Há aqui um excelente casamento entre três narrativas paralelas: o que é falado pelo protagonista, Soluço, enquanto apresenta ao público a mitologia onde está inserido; o que é mostrado em jogadas de câmera intensas e imersivas que situam o público diretamente no meio da ação; e a trilha sonora excitante e crescente de John Powell, que é assunto para comentarmos um pouco mais a frente.

A sequência de abertura ficou sob os cuidados zelosos de Pierre-Olivier Vincent. Seu trabalho tão magnífico e equilibrado de exibição de informações acabou exigindo o máximo da equipe de som, que foi comandada pelo vencedor do Oscar Gary Rizzo. Rizzo concebeu aqui o que é classificado por muitos críticos como “um primor de mixagem”. Todo o caráter do protagonista, suas ambições e suas limitações físicas foram expostas em uma sequência que definiu toda a jornada do filme em apenas alguns minutos. Bastou esse curto espaço de tempo para sentirmos que conhecíamos Soluço há anos, como se já convivêssemos com o desastre ambulante que ele era e sentíssemos uma mistura de pena e interesse pela figura magricela que ele era.


O que chama a atenção é que, além de sermos muito bem apresentados ao protagonista, somos eficientemente bem inseridos no ambiente em que ele vive. A ameaça dos dragões se faz real, e é compreensível o temor que mobiliza a vila inteira para combatê-los. O legal é que aqui não há apenas um tipo de dragão, mas sim uma variedade grande de raças e formas, cada uma com sua identidade peculiar. Esse aspecto proporciona ares de imensidão ao universo construído, mostrando que há muito mais do que eles conseguem mostrar na tela e, com isso, deixam a cargo da imaginação os muitos outros lugares que ainda existem a serem explorados na vastidão do mundo nos tempos de Soluço.

E a cereja do bolo, com a conclusão dessa sequência incrível, é a revelação de que o líder da comunidade, Stoico, o Imenso, é também o pai do raquítico menino que acabou de causar mais um desastre. É um trabalho de edição incrível, e recomendo a todos que vejam, revejam e estudem essa sequência de abertura. Há muito a ser aprendido com essas cenas, principalmente se você for estudante de Cinema.


AS AULAS DE VÔO

Para dar mais veracidade ao processo de aprendizado de Soluço e Banguela em seu treinamento de vôo, os animadores passaram por um estudo aprofundado sobre as teorias de aviação e uma análise intensa sobre os movimentos aéreos de várias criaturas, principalmente morcegos e pássaros. Essa escola de aviação, comandada por Simon Otto (que foi quem desenhou o Banguela), foi o que tornou a física que se vê no filme algo tão crível e real. Este foi um resultado deliberado de toda a equipe, que teve um entrelaçamento enorme para que o resultado final fosse harmônico em todas as suas partes.

A INFLUÊNCIA DE ROGER DEAKINS

Muito da impecabilidade do filme se deve ao trabalho de fotografia, cuja consultoria foi assinada por ninguém menos do que Roger Deakins (sim, o mesmo cara que venceu o Oscar da categoria por ‘1917’ e ‘Blade Runner 2049’, além de ter uma lista extensa de filmes magníficos no currículo). O trabalho de Deakins na animação foi ajudar a criar os ambientes e posicionar a “câmera” na renderização, para capturar às telas o que de melhor havia no universo digital criado para o filme. Ele foi consultor dos três filmes, mas vamos destacar o seu trabalho na animação do longa de 2010 porque é ele quem dita toda atmosfera das sequências.

Muito pode ser dito através da fotografia, e Deakins mostrou isso aos animadores da Dreamworks. Uma grande parcela do charme do filme está nas sutilezas, nas coisas não ditas, como a revelação do motivo de Banguela (o dragão preto de olhos verdes que é a o mesmo dragão a ser treinado segundo o título) não conseguir voar para fora do vale onde cai após ser pego pela arapuca de Soluço. E disso, das coisas ditas sem se falar, Deakins entende muito bem.  Há uma cena que merece destaque especial. onde a iluminação toda é isolada, limitada a apenas duas velas que produzem sombras opulentas no ambiente. A cena em questão é a do diálogo (ou da tentativa de estabelecer um) entre Soluço e Stoico. O momento “pai e filho” é um tanto quanto embaraçoso, e o silêncio constrangedor que vagueia entre eles é ainda mais explorado com essa pouca iluminação. No entanto, é possível ver todo o recinto, mesmo com a baixa luz. É como se, mesmo com poucas palavras, eles estivessem tomando ciência de com quem estão lidando e começassem a conseguir, finalmente, enxergar um ao outro - como quando se entra em um local escuro e a visão demora um tempinho até se acostumar com a baixa luminosidade.


Outra cena curiosa é uma que acontece aos cinquenta minutos deste primeiro filme, onde há uma batalha decisiva sobre quem será escolhido entre a classe do Bocão a matar o seu primeiro dragão perante toda a comunidade. No páreo estavam Soluço e Astrid, que é quem a câmera acompanha ferozmente enquanto tenta derrubar a fera espinhenta que viria a ser, futuramente, sua melhor amiga. Para essa cena há uma escolha interessante de fotografia no estilo “câmera na mão”, que foi muito bem efetuado por Gil Zimmermann. Acompanhamos o filme praticamente todo sob a perspectiva de Soluço e, para mostrar as coisas por um outro lado, mudaram toda a abordagem visual. As coisas acontecendo pelo ponto de vista da Astrid, que tenta entender o controle inexplicável que Soluço exerce sobre os dragões, dão ao feito surreal de soluço um ar ainda maior de absurdo impossível. É uma ótima cena.

Todavia, o maior êxito da fotografia está na capacidade de dar a devida textura às coisas. Quando Soluço sai à procura do dragão que derrubou com sua armadilha, ele adentra um bosque e, graças ao detalhamento fotográfico de Deakins, é possível sentir todo o ambiente ao redor, desde o clima levemente frio até a umidade do ar e do chão do local. Dá para sentir o lodo nas pedras e o orvalho nas folhas, dá para sentir a brisa soprando o nevoeiro, dá para sentir o cheiro da natureza verde invadindo os pulmões - pode até parecer exagero, mas com o envolvimento emocional correto (e um breve exercício de imaginação ou de memória, no caso de quem já experimentou ir a um lugar similar) a imersão transporta o público e provoca sensações que só quem está na história consegue sentir.

A excelência da fotografia perdura também pelos outros dois filmes seguintes, dando a devida dimensão de mistério, vertigem e imensidão que esse mundo tão incrível tem. Nas cenas de luto e luta no segundo filme e nas cenas de sacrifício e contemplação do terceiro, é notável o capricho e a evolução da linguagem visual que a equipe adquiriu. A fotografia é, inclusive, o que determina um marco emocional. No primeiro filme vemos Soluço e Banguela se aproximando para iniciar seu relacionamento fraterno, e no terceiro filme o mesmo ato é revisitado, com exatamente o mesmo ângulo, para determinar o rompimento do convívio entre eles - mas não da amizade. Essa é a beleza da fotografia de 'Como Treinar o Seu Dragão'.


A TRILHA SONORA DE JOHN POWELL

Uma das maiores injustiças de todos os tempos cometidas pela Academia foi não ter dado o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original para John Powell em 2011. A composição de Powell para o filme já é, sozinha, um espetáculo completo. É incrível como um tema simples consegue permanecer tão vivo e variar tanto dentro de uma obra como essa, e muito da identidade da produção se deve ao detalhamento riquíssimo das orquestrações que exploram os temas escritos por Powell.


No entanto, a trilha sabe se abster quando necessário. Há um silêncio considerável na cena em que Stoico e Bocão dialogam sobre como proceder em relação a Soluço, que contrasta com o (tão musical) restante do filme. Essa ausência diz muita coisa, além de dar um ar mais sério ao que os dois velhos vikings estão conversando. Sendo basicamente uma exceção, nota-se uma riqueza musical abundante no restante do filme. O mesmo pode ser visto nas outras duas sequências.

A cena final do terceiro filme tem uma trilha intensa, que desliza com facilidade em um oceano de emoções e sensações, navegando com cantos líricos, metais e muitas cordas. Confira no vídeo mais abaixo a conclusão da saga (com spoilers) contendo as cenas acompanhadas do áudio somente da orquestração respectiva à cena, e note como a trilha composta por Powell conduz as emoções e a percepção acerca da história, ditando o ritmo da trama. É uma trilha que começa tensa, com um retumbar ritmado de tambores e, na sequência, cresce em metais intensos, evidenciando a batalha, até desfalecer em queda com Soluço enquanto o mesmo contempla o próprio final em seu último sacrifício pelo amigo. Depois disso vem o tema nostálgico da saga, virando o jogo e mostrando a vitória em uma reviravolta surpreendente, seguida por uma junção de instrumentos de sopro e cordas pacificadoras, para então se render ao sentimentalismo triste da despedida entre todos os amigos (tanto os personagens entre si como o público e seus personagens queridos). A cena se fecha numa crescente de satisfação e saudade, com ares de recompensa e, principalmente, empatia. Mas empatia é assunto para a parte dois desse especial de 10 anos da saga, que irá tratar a redefinição da masculinidade dentro de uma sociedade de brutamontes.

As trilhas dos três filmes conversam entre si, proporcionando um agradável tom de nostalgia que, de certo modo, representou o abrir e fechar da melhor trilogia animada da década. Não perca a segunda parte da matéria!

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