Especial 10 anos: A vilania, as mensagens e a masculinidade complexa de 'Como Treinar o Seu Dragão'

Por Vinícius Martins @cinemarcante

Essa é a segunda parte do especial de 10 anos da trilogia 'Como Treinar Seu Dragão'. Perdeu a primeira ? Confere aqui antes de ler a segunda parte.

🎯CONTÉM SPOILERS 

“Essa é Berk”. A primeira fala da saga de Soluço, presente também nas outras duas sequências, é a apresentação de um mundo mítico que se mistura ao nosso mundo com uma justificativa poética para a não existência dos dragões nos céus de hoje em dia, relação que é explicada de uma maneira curiosamente inteligente - mas não é sobre isso que vamos tratar hoje. Berk, a ilha que é lar dos vikings dessa mitologia infanto-juvenil, é constantemente atacada por dragões até que, por uma grande ironia da vida, o filho do chefe da tribo se torna amigo de um dragão e muda a consciência de todo mundo do lugar. Hoje falaremos sobre as nuances pouco notadas nessa fantástica aventura e das entrelinhas que ponderam os estereótipos da cultura viking aqui apresentada.

Mas afinal, o que é Berk? Com a conclusão da trilogia vem a mensagem de que “Berk é o seu povo”, você deve se lembrar. No entanto, seu povo é formado por pessoas “duras e sem sabor”, como o próprio soluço descreve. Por conta disso, é notável a diferença do primeiro momento em que Berk é apresentada ao público em contraste com a abertura do terceiro filme, onde a vila cinzenta se torna cheia de cores e transborda vida em todas as direções. Berk mudou radicalmente, e isso só foi possível porque o seu povo mudou; e essa mudança se deu por causa do garoto que foi classificado anteriormente pelo próprio pai como “o pior viking que já existiu em Berk”. É por esse motivo que agora pergunto: o que determina o indivíduo como viking e qual é a essência desse povo?

A SENSIBILIDADE DA MASCULINIDADE BRUTA

Vikings são tidos, historicamente, como uma sociedade de bravos e impiedosos guerreiros, desbravadores de mares e exímios construtores. É inegável que o conceito popular sobre os vikings seja vinculado ao termo “coragem”, e isso se reforça a cada filme ou série de TV que surge de tempos em tempos acerca daquele povo. Como vemos nas novelizações contemporâneas, a coragem não é só o combustível dos vikings; é também uma maneira de se provar socialmente para, assim, alcançar algum status. Em ‘Como Treinar o Seu Dragão’ nos deparamos com um protagonista que é corajoso por, justamente, se recusar a seguir as imposições sociais de seu povo. Ele se nega a consumar o ato que o tornaria uma lenda entre os seus, desprezando a própria cultura - que lhe foi imposta desde o nascimento - e tomando a direção contrária a o que o foi ensinado como o correto. De certo modo, ele é corajoso por ser covarde.

Soluço é um herói subversivo, em diversos aspectos. Ele não se enquadra aos padrões, não se contenta com as próprias limitações e anseia (em primeiro momento) por um reconhecimento que, como ele bem descobre, não vale o preço que deve ser pago: o assassinato. Enquanto outros heróis são erguidos a esse título através da derrota de seus rivais e do sacrifício íntimo que cometem ao matá-los (vide ‘O Homem de Aço’, de 2013, dirigido por Zack Snyder), Soluço se transforma em herói a partir do momento em que rompe com esse ciclo vicioso e se nega a matar o Fúria da Noite que capturou. Ele percebe que não quer ser esse tipo de homem, esse tipo de pessoa, esse tipo de herói. E por causa dessa escolha ele acaba redefinindo, mesmo sem saber, o que é ser um viking para a própria comunidade viking.

“Somos vikings. Temos teimosia crônica” - diz Soluço na apresentação da trama. Stoico, seu pai, comenta algo parecido em seu discurso de batalha, quando fala que a morte é um efeito colateral. “Somos Vikings, é um risco ocupacional”, diz ele. Esse conceito é repetido por Soluço no final do filme para reforçar que, apesar de estar montando um dragão, ele e os demais ainda continuam sendo vikings. Isso rende um debate de introdução à Filosofia, quando discutem-se as definições do sujeito. Ser viking é, necessariamente, ser um assassino? É possível continuar sendo viking mesmo sem cometer atrocidades? Ou serem assassinos é o que transforma os vikings em vikings? A essência do viking é homicida? A brutalidade suprime a empatia e os demais sentimentos? Perguntas, perguntas e mais perguntas. A resposta a todas elas, segundo a trilogia dirigida por Dean Deblois, é que não. E é sobre a fragilidade dessa masculinidade bruta que falaremos agora, com o melhor exemplar da franquia.

A BRAVURA DE STOICO

Por trás da carranca de Stoico, o Imenso, está um homem bom e, até certo ponto, frágil também. A aparência de machão duro e severo se esvai quando vemos a intimidade dele, seja enquanto dialoga com seu melhor amigo, Bocão, ou quando ele está sozinho. As dificuldades de criar um filho sozinho (ainda mais um adolescente socialmente desajustado) transparecem em suas tentativas de estabelecer diálogo com Soluço no decorrer do primeiro filme. Quando ele acredita que finalmente terá assunto, toma um balde de água fria e se vê, mais uma vez, em um momento embaraçoso. Tanto é que, ao sair dessa conversa, Stoico acidentalmente esbarra em vários objetos após dar uma respirada bem funda - com uma linguagem visual de que na verdade é ele quem não está conseguindo se encaixar na relação pai/filho. Além dessa cena há três outras que valem a pena comentar, que demonstram com eficácia o quão sensível é o mundo de Stoico, e revelam a verdadeira face sob as truculências ofensivas que vez ou outra ele emana.

1: No primeiro filme, quando descobre que o filho tem cuidado de um dragão (criatura que ele até então abomina, principalmente por um deles ter - aparentemente - matado Valka, que era sua esposa e mãe de Soluço), Stoico tem uma discussão feia com Soluço e, após jogá-lo no chão, profere ao jovem: “Você não é um viking. Como pode ser meu filho?”. Ele sai de casa batendo a porta e então, fora da vista de Soluço, ele sente o peso do que acabou de dizer. Há um segundo curioso (em meados do 66º minuto de duração) quando Stoico, já do lado de fora da casa, cambaleia em choque antes de seguir com sua investida contra os dragões em uma missão marítima. Ele visivelmente lamenta a estreita relação que acabou de profanar com palavras de ódio e intolerância. Posteriormente ele se redime e dá sua benção a Soluço com um pedido de desculpas e aceitando seu apreço pelos dragões, inclusive adotando um para si. Mas aquele momento rápido, quando Stoico hesitou, foi quando quem ele realmente era se revelou para ele mesmo, e ele preferiu permanecer em ignorância. A postura de Stoico só muda quando ele vê o filho se arriscar para salvar ao dragão, e percebe que a tal “teimosia crônica” também é traço do filho. Stoico, naquele momento, entende que Soluço também é um viking.

2: Em ‘Como Treinar o Seu Dragão 2’ há a revelação de que Valka, a mãe de Soluço que há anos era dada como morta, estava viva e havia se juntado a uma colônia de dragões. Soluço é o primeiro a se encontrar com ela, o que faz com que seja tido como desaparecido. Stoico, por sua vez, sai em defesa do filho numa busca incessante até que o encontra e tenta forçá-lo a voltar para Berk, a fim de evitar um confronto com Drago Sangue Bravo, que é o vilão da trama. E é aí que Bocão, que acompanhava Stoico nas buscas, surge com a notícia de que há algo que ele precisa ver (coisa que Soluço já estava tentando dizer), adentrando a caverna de gelo. Stoico segue na direção apontada por eles, rumo ao mistério que o aguarda e, ao ver a esposa em pé diante dele, apenas a alguns passos de distância, ele estanca. Valka, que conhecia o marido bem o bastante para esperar uma reação explosiva e impulsiva pelo fato de ter sido enganado por todo aquele tempo e lamentado a morte dela, se prepara para enfrentá-lo; mas não é o que acontece. Enquanto Valka começa a argumentar e dar explicações quanto ao seu sumiço e a pedir desculpas, Stoico caminha até ela, lentamente, com o olhar incrédulo fixo na silhueta que se apresenta diante dele. “Pare de ser tão Stoico, Stoico. Vá em frente! Berre, grite, diga alguma coisa!” e Stoico, finalmente parado a um passo dela, fala com todo o amor que lhe acometeu durante todo aquele tempo: “Você está tão linda quanto no dia em que eu te perdi”. E, com os olhos marejados, ele a beija.

3: Em um flashback no terceiro filme (que você pode assistir no vídeo ao final da página), o pequeno Soluço acorda com sede no meio da noite e flagra seu pai chorando junto a lareira. Convidado ao seu colo, Soluço se senta e pergunta “Pai, você vai encontrar uma outra mãe?”. Stoico abraça Soluço e responde: “Eu não quero outra. Sua mãe foi a única mulher pra mim. Ela era o amor da minha vida. Mas com o amor vem a perda, filho. Faz parte da vida. Às vezes dói, filho, mas no fim tudo vale a pena. Não existe dom maior do que o amor”. Essa lembrança termina por orientar Soluço em sua jornada de aprendizado e amadurecimento enquanto se estabelece como líder da tribo, e mostra que Stoico permaneceu amando Valka mesmo após o conformismo com a sua morte. O explicitar do lado amante de Stoico revela o turbilhão de sentimentos que provocou a dureza dele. A vida o obrigou a ser forte, e a força, como ele conhece, está dos braços. Os brutos também amam.

A sensibilidade de Stoico é um excelente objeto de estudo comportamental, sobretudo no que diz respeito ao modo como as mazelas definem o indivíduo a curto, médio e longo prazo. O debate pode se estender a contextos culturais, resistência a mudanças e até a crises de identidade, mas por enquanto basta apenas entender uma coisa: Stoico é um homem sensível.

SÓ PRECISÁVAMOS DE TUDO ISSO

A prova definitiva para Soluço de que ele é de fato parte da comunidade, como um viking legitimado, chega a ele quando escuta de Stoico que no fim eles só precisavam de “tudo isso”. Soluço questiona “Mas você tá apontando pra eu todo!”, e Stoico confirma com um sorriso. Nas ocasiões anteriores do filme onde essa indagação apareceu, Soluço sempre foi diminuído. Logo no começo vemos Bocão que, comentando o quão desastrado Soluço é, fala que antes de ir combater os dragões ele deveria parar de ser “tudo isso”. A resposta de Soluço foi a mesma dada ao pai no final do filme, mas com um desconforto disfarçado de sarcasmo. A mudança do cenário - e da perspectiva dele - do ponto inicial ao ponto final da jornada de Soluço no primeiro filme é evidência da aceitação da comunidade e a aceitação paterna que ele tanto almejava um dia ter. Soluço termina o primeiro filme se sentindo realizado, e essa é a maior recompensa presente na mensagem final do longa.

OS ARQUÉTIPOS DA VILANIA

Os dragões são apresentados, logo na introdução da jornada de Soluço, como os vilões da trama. Eles são uma praga a ser combatida, e a ameaça mortal que eles são deve ser aniquilada para que, finalmente, a paz impere sobre Berk e os demais reinos dos homens. No entanto, com a mudança da perspectiva provocada pelo exercício da empatia, os dragões passam a serem aliados e os demais humanos passam a se mostrar como a verdadeira ameaça. Temos aqui três tipos de vilões. O primeiro deles é a circunstância, já que o primeiro filme não tem uma figura individual que seja antagônica. No segundo filme temos Drago Sangue Bravo, e fechando a trilogia é Grimmel quem ocupa o posto de rival do herói.

Soluço sempre foi um garoto inteligente, e isso nota-se já no primeiro filme. Enquanto os outros vikings combatiam dragões com músculos, Soluço usava o cérebro para criar armadilhas e arapucas. E após obter seu primeiro (e inesperado) sucesso de caça, Soluço passa a aprender suas maiores lições justamente com aqueles que são tidos socialmente como os vilões. Os dragões, que deveriam ser combatidos e mortos, se tornam professores do jovem viking e o moldam para que ele se torne o homem que vemos ao final do terceiro filme; o líder que erra, que é sábio para aprender com os próprios erros, que exerce a compaixão e não faz condenações impulsivas. “Eu não podia matá-lo porque ele estava tão assustado quanto eu. Quando eu olhei para ele, eu vi a mim mesmo”. A fala de Soluço em sua conversa franca com Astrid no final do segundo ato do filme de 2010, é a confissão mais profunda da alma amargurada que Soluço é, com o trágico sabor do fracasso mesmo quando está acertando. E é o aprendizado do Fúria da Noite, que não desistiu de voar mesmo com a deficiência provocada pela queda, que o motiva a se reerguer de seu descontentamento intimista para a escolha pela ação que gera a mudança. Em uma vila de pessoas desmembradas por tantas batalhas contra dragões, as cicatrizes mais ásperas, Soluço renega o uso dos músculos e evoca o amor acima das próprias ambições.

Se antes Soluço devia confrontar a si mesmo e reinventar seu propósito de vida, no segundo filme temos um homem que sente rancor das feras e as quer usar como ferramenta/arma. Drago Sangue Bravo foi mutilado por um dragão (coisa que é comum e recorrente nesse universo; veja Bocão e o próprio Soluço, com seus membros postiços que são tão úteis quanto um canivete suíço). Ele escraviza um Alfa, que é capaz de exercer poder sobre a vontade dos demais dragões, comanda o dragão usando sua força bruta. Em uma cena icônica do segundo filme, Drago Sangue Bravo enfrenta um Pesadelo Monstruoso e, após conseguir se proteger com sucesso de sua esguichada de fogo, se impõe sobre ele colocando o pé sobre o seu rosto. Sangue Bravo é intimidador, em diversos meios, e adotou essa postura após ver sua vila queimada e ter sua família morta após um confronto com os dragões. Sua proposta é fazer com que os dragões temam os humanos assim como ele os temeu um dia, e por isso ele decidiu montar um exército de dragões e homens, onde as feras servem aos propósitos humanos, escravizando-as. Ele representa uma ameaça física.

No terceiro filme, lançado em 2019, temos Grimmel, o Terrível, que é uma polaridade oposta a Soluço, muito embora seja intelectualmente bastante parecido. Grimmel é um estrategista, e é um vislumbre do que Soluço poderia ter se tornado caso tivesse decidido eliminar o Fúria da Noite quando o capturou. Ele é sádico e competitivo, fissurado em jogos de caça e exerce sua influência através de manipulação química. Ele usa o veneno (adulterado) de uma raça de dragões para dopá-los e, assim, comandá-los ao seu próprio gosto. Ele tem um fascínio doentio em exterminar dragões, em especial os da raça Fúria da Noite, e acha absurda a ideia de dragões e humanos viverem juntos em comunidade. Em um diálogo com Soluço, ele diz: “Bem, diferente de você, quando eu era garoto e encontrei um Fúria da Noite eu o matei enquanto dormia. Esse simples ato de coragem me fez um herói na minha aldeia. Então, eu decidi matar todos os últimos, trazendo paz real às pessoas deste mundo”. Grimmel acredita que a coexistência é impossível, e sua ideologia é avessa aos hábitos comprovados pelo povo de Berk. Ele representa uma ameaça intelectual.

Desse modo, montando um quadro de estrutura vilanesca, temos o seguinte:

Vilão do 1º filme: a ambição e a pressão social-patriarcal sobre o tido “politicamente correto”

Vilão do 2º filme: Drago Sangue Bravo

Vilão do 3º filme: Grimmel

Traduzindo com uma interpretação livre, o resultado é:

Vilão do 1º filme: o regime social vigente

Vilão do 2º filme: a força física, a brutalidade

Vilão do 3º filme: a estratégia de uma mente maligna

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As ameaças presentes em ‘Como Treinar o Seu Dragão’ são fatores de formação. Seja em conflitos isolados ou em grandes batalhas, tudo contribuiu para o aprendizado de Soluço e o moldou em seu crescimento. O amor fraternal entre ele e Banguela mostra que na verdade quem foi treinado não foi o dragão, mas sim o próprio Soluço. Ele aprendeu a ser um homem, um homem de verdade, muito maior do que qualquer outro de sua aldeia. Um homem com o coração e a inteligência comandando os braços, e não como um refém da força física bruta que quando ele nasceu era o fator determinante de quão forte um indivíduo poderia ser.

Soluço é o melhor herói dos nossos tempos. A geração atual precisa conhecer Soluço e aprender com ele sobre o que de fato significa humanidade. O garoto conhecido como o pior viking era, na verdade, o melhor dentre todos eles. E é por todo o amor que transborda dos filmes dessa trilogia (e também dos curta-metragens e séries da Netflix desse mesmo universo) que considero este um dos maiores marcos cinematográficos da última década.